A VERDADE DO EVANGELHO
TEOLOGIA SISTEMÁTICA

Charles Finney

 

AULA 21

A CAPACIDADE DA GRAÇA

 

Graça é favor imerecido. Seu exercício consiste em dar o que, sem uma violação da justiça, poderia ser retido. A capacidade de obedecer a Deus, como vimos, é a possessão de poder adequado para o desempenho do que é exigido. Se, pois, os termos são usados no sentido formal, por uma capacidade da graça tem de se querer dizer que o poder que no momento os homens possuem para obedecer os mandamentos de Deus é um dom da graça com relação ao mandamento. Ou seja, a dotação de poder adequado para o desempenho da coisa exigida é questão da graça ao invés da justiça.

 

Mostrarei o que se quer dizer pelo termo capacidade da graça.

Os instigadores deste esquema sustentam que pelo primeiro pecado de Adão, ele e toda a sua posteridade perderam todo o poder natural e toda a capacidade de todo o tipo em obedecer a Deus; sendo, portanto, uma raça completamente incapaz de obedecer a lei moral ou de render a Deus qualquer serviço aceitável; significa que a humanidade, como conseqüência do pecado de Adão, ficou completamente incapaz de usar os poderes da natureza de qualquer outro modo senão para pecar. Os homens são capazes de pecar ou desobedecer a Deus, mas completamente incapazes de obedecê-lo; eles não perderam todo o poder de agir, mas têm-no somente em uma direção, isto é, em oposição à vontade e lei de Deus. Por uma capacidade da graça essa corrente propõe que, por causa da expiação de Cristo, Deus tem graciosamente restabelecido ao homem a capacidade de aceitar os termos da misericórdia, ou de cumprir as condições de aceitação com Deus; em outras palavras, que pela ajuda graciosa do Espírito Santo, o qual, sob a condição da expiação, Deus deu a todo membro da família humana, todos os homens são dotados de uma capacidade da graça em obedecer a Deus. Por uma capacidade da graça se quer dizer, então, que a capacidade ou poder em obedecer a Deus que todos os homens hoje possuem, não é em virtude de sua natureza ou poderes constitucionais, mas em virtude da habitação e influência graciosa do Espírito Santo, gratuitamente dado ao homem por causa da expiação de Cristo. A incapacidade ou perda total de todo poder natural em obedecer a Deus, em que os homens como raça caíram pelo primeiro pecado de Adão, essa corrente chama de pecado original; talvez mais estritamente, esta incapacidade é uma conseqüência daquele pecado original no qual o homem caiu, consistindo na corrupção total da natureza inteira do homem. Essa posição sustenta que pela expiação Cristo fez compensação pelo pecado original, em tal sentido que a incapacidade resultante foi retirada e, hoje, os homens são, pelo auxílio da graça, capazes de obedecer e aceitar as condições de salvação. Quer dizer, são capazes de se arrepender e crer no Evangelho. Em resumo, são capazes em virtude desta capacidade da graça de cumprir o seu dever ou obedecer a Deus. Esta, se compreendo esses teólogos, é a declaração justa da sua doutrina da capacidade da graça.

 

Esta doutrina de uma capacidade da graça é um absurdo.

A questão não é se os homens sempre obedecem a Deus sem a influência da graça do Espírito Santo. Eu afirmo que não. Assim o fato da influência da graça do Espírito Santo, que é mostrada em todo caso de obediência humana, não é questão em debate entre aqueles que sustentam e aqueles que negam a doutrina da capacidade da graça, no sentido explicado acima. A questão em debate não é se os homens, em todo caso, usam os poderes da natureza da maneira que Deus requer, sem a influência da graça do Espírito Santo, mas se são naturalmente capazes de usá-los assim. O fato é que eles nunca os usam sem uma influência divina da graça, a ser atribuída à incapacidade absoluta ou ao fato de que, desde o princípio, os homens consagram universal e voluntariamente os seus poderes para a satisfação do ego e que, portanto, não querem, a menos que sejam divinamente persuadidos pela influência da graça do Espírito Santo, em todo caso a voltar e consagrar os seus poderes ao serviço de Deus? Se esta doutrina da incapacidade natural e da capacidade da graça é verdade, segue-se inevitavelmente:

1. Que exceto pela expiação de Cristo e pela conseqüente dotação de uma capacidade da graça, ninguém da raça de Adão jamais poderia ter sido capaz de pecar. Pois neste caso a raça inteira teria sido completamente destituída de qualquer tipo ou grau de capacidade em obedecer a Deus. Por conseguinte, os homens não poderiam ter sido súditos do governo moral e, é claro, suas ações não poderiam ter tido nenhum caráter moral. É uma verdade primeira da razão, uma verdade em todos os lugares e por todos os homens necessariamente presumida nos seus julgamentos práticos, que um sujeito do governo moral deve ser um agente moral, ou que a agência moral é uma condição necessária para qualquer indivíduo ser um sujeito de um governo moral. No julgamento prático dos homens, pouco importa se um ser alguma vez foi um agente moral ou não. Se de algum modo deixou de ser um agente moral, os homens presumem universal e necessariamente que é impossível ser um sujeito do governo moral tanto quanto um cavalo o pode ser. Suponha que tal indivíduo tenha por sua própria falta se tornado idiota ou lunático; todos os homens sabem absolutamente e em seu julgamento prático presumem que neste estado ele não é e não pode ser um sujeito do governo moral. Sabem, também, que neste estado o caráter moral não pode ser justamente pressuposto de suas ações. Sua culpabilidade em se privar da agência moral pode ser muito grande e sua culpabilidade em se privar da agência moral pode ser igual à soma de toda a falta da qual é a causa -- mas ser um agente moral, estar sob obrigação moral neste estado de demência ou loucura, ele não pode. Esta é uma verdade primeira da razão, irresistível e universalmente presumida por todos os homens. Se, pois, a posteridade de Adão foi por seu próprio ato pessoal abandonada e privada de toda a capacidade em obedecer a Deus, neste estado ela teria deixado de ser agente moral e, por conseguinte, não poderia mais ter pecado. Mas o caso sob consideração não é um pressuposto justo, mas é aquele em que a agência moral não foi abandonada pelo próprio agente. É o caso em que a agência moral nunca foi e nunca poderia ter sido possuída. No caso sob consideração, a posteridade de Adão nunca teria possuído algum poder para obedecer a Deus ou fazer alguma coisa aceitável a Ele. Por conseguinte, nunca poderia ter sustentado com Deus a relação de sujeitos do seu governo moral. É claro que a posteridade adâmica nunca poderia ter tido caráter moral; certo ou errado, num sentido moral, nunca poderia ter sido pressuposto por suas ações.

2. Tem de se seguir desta doutrina da capacidade da graça e incapacidade natural que o gênero humano perdeu a sua liberdade ou a liberdade de querer no primeiro pecado de Adão; que o próprio Adão e toda a sua posteridade teriam e poderiam ter sustentado com Deus só a relação de agentes necessários, ao invés de livres, não tivesse Deus lhes dado uma capacidade da graça. Mas que Adão ou a sua posteridade perdeu a liberdade ou a agência livre pelo primeiro pecado adâmico não só é uma pressuposição simples, mas absurda. É certo que Adão caiu num estado de alienação total da lei de Deus e decaiu num estado de egoísmo supremo. Sua posteridade seguiu o exemplo dele por unanimidade. Todos ficaram mortos em transgressões e pecados. Que esta morte em pecado consiste ou implica em perda da agência livre é o que deve ser provado. Mas isto não pode ser provado. Tenho discutido muito extensamente o assunto da depravação moral ou pecaminosidade humana em ocasião anterior, de modo que é desnecessário estender-se sobre isso aqui.

3. Mais uma vez, se é verdade, como afirmam esses teólogos, que os homens têm apenas uma capacidade da graça para obedecer a Deus, e que esta consiste na presença e agência do Espírito Santo, segue-se que, quando o Espírito Santo é retirado do homem, este não é mais um agente livre e, a partir daí, torna-se incapaz de ação moral e, é claro, não pode mais pecar. Conseqüentemente, se ele viver alguns anos depois desta retirada, nem o pecado nem a santidade, nem a virtude nem o vício, nem o aspecto meritório nem a culpabilidade podem ser pressupostos por sua conduta. O mesmo será e deve ser verdade em toda a sua eternidade futura.

4. Se a doutrina em questão é verdadeira, segue-se que a partir do momento da retirada da influência da graça do Espírito Santo, o homem não é mais um sujeito da obrigação moral. A partir de então é absurdo e injusto requerer-lhe o desempenho de algum dever. Conceber que o homem não é mais sujeito do dever; pensar ou falar do dever como pertencente a ele é tão absurdo quanto pensar ou falar do dever de uma mera máquina. A partir do momento da retenção de uma capacidade da graça, o homem deixa de ser um agente livre e se torna um agente necessário, tendo o poder de agir senão em uma direção. Assim, ele não tem a possibilidade de ser capaz de pecar ou ser santo. Suponha que ainda possua o poder de agir contrário à letra da lei de Deus. E daí? Esta ação não pode ter caráter moral, porque o indivíduo tem de agir em uma direção e não pode agir em nenhuma outra. É tolice afirmar que tal ação possa ser pecadora no sentido de censurável. Afirmar que pode é contradizer uma verdade primeira da razão. Os pecadores que extinguiram o Espírito Santo e dos quais este foi completamente retirado não são mais culpados de sua inimizade contra Deus e de toda a sua oposição ao Altíssimo. Eles são, de acordo com esta doutrina, tão livres da culpa quanto são os movimentos de uma mera máquina.

5. Mais uma vez, se a doutrina em questão é verdadeira, não há razão para crermos que os anjos que caíram de sua submissão a Deus pecaram senão uma vez. Se Adão perdeu sua agência livre com a Queda ou com o seu primeiro pecado, não há dúvida de que os anjos também a perderam. Se uma capacidade da graça não tivesse sido dada a Adão, é certo, de acordo com a doutrina em questão, que ele nunca poderia ter sido o sujeito da obrigação moral depois do momento do seu primeiro pecado e, por conseguinte, nunca poderia ter pecado outra vez. O mesmo deve ser verdade em relação aos demônios. Se com o seu primeiro pecado entraram na condição de agentes necessários, depois de terem perdido a sua agência livre, nunca teriam pecado desde então. Quer dizer, o caráter moral de sua conduta não poderia ter sido afirmável desde aquele evento, a menos que uma capacidade da graça lhes fosse dada. Que isto tenha sido feito não pode ser demonstrado, mesmo lançando mão dos melhores argumentos da razão. Os demônios, de acordo com esta doutrina, não devem hoje ser culpados por tudo o que fazem para se oporem a Deus e arruinarem as almas. Na pressuposição em questão, eles não podem deixar de fazê-lo; e você também pode culpar os ventos e as ondas pelos males que os demônios às vezes fazem, tanto como culpar Satanás pelo que faz.

6. Se esta doutrina é verdadeira, não há e nunca haverá um pecado no inferno, pela razão óbvia de que ali não há nenhum agente moral. Eles são agentes necessários, a menos que seja verdade que o Espírito Santo e uma capacidade da graça tenham estado e continuado lá. Isto não é, creio, discutido pelos instigadores deste esquema. Mas se eles negam aos habitantes do inferno a liberdade da vontade, ou, o que é o mesmo, a capacidade natural de obedecer a Deus, têm de admitir, ou serem grotescamente incoerentes, que não há pecado no inferno, quer nos homens, quer nos demônios. Mas esta admissão é agradável à razão ou à revelação? Eu sei que os instigadores deste esquema afirmam que Deus pode com justiça tornar os homens, de quem a capacidade da graça tenha sido retirada -- e os demônios -- responsáveis por sua conduta com base no fato de que eles destruíram sua própria capacidade. Mas suponha que isto fosse verdadeiro -- que eles se tivessem feito idiotas, lunáticos ou agentes necessários ao invés de agentes livres. Poderia Deus com justiça, poderia a razão iluminada ainda considerá-los agentes morais e moralmente responsáveis por sua conduta? Não, com efeito! Deus e a razão podem com justiça culpá-los e torná-los miseráveis por aniquilarem sua liberdade ou agência moral, mas ainda torná-los responsáveis pela obediência presente seria absurdo.

7. Vimos que a capacidade de todos os homens de mente sã de obedecer a Deus é necessariamente presumida como uma verdade primeira e que esta pressuposição é proveniente das próprias leis da mente, da condição indispensável da afirmação ou até da concepção de que são sujeitos da obrigação moral; que, salvo por esta pressuposição, os homens não podem senão conceber a possibilidade da responsabilidade moral e do aspecto meritório e da culpabilidade. Se as leis da mente permanecem inalteradas, isto é e sempre será assim. No mundo eterno e no inferno, os homens e os demônios têm de presumir necessariamente a própria liberdade ou capacidade de obedecer a Deus como a condição de sua obrigação de assim fazê-lo e, por conseguinte, de serem capazes de pecar ou de serem santos. Considerando que a revelação nos informa que os homens e os demônios continuam pecando no inferno, sabemos que ali também deve ser presumido como uma verdade primeira da razão que eles são agentes livres ou que têm a capacidade natural de obedecer a Deus.

8. Mas o absurdo desta doutrina -- a capacidade da graça para cumprir o dever ou obedecer a Deus -- aparecerá mais adiante, se considerarmos que uma verdade primeira da razão, a obrigação moral, implica na agência moral e que a agência moral implica em liberdade de vontade; ou, em outras palavras, implica numa capacidade natural de agir de acordo com a obrigação. Esta capacidade é necessariamente considerada pela inteligência como osine qua non da obrigação moral, com base na justiça natural e imutável. Um mandamento justo sempre implica numa capacidade de obedecê-lo. Uma ordem para executar uma impossibilidade natural não imporia e não poderia impor a obrigação. Suponha que Deus ordenasse que os seres humanos voassem sem lhes dar poder; poderia tal ordem impor obrigação moral? Não, com efeito! Mas suponha que lhes desse poder, ou lhes prometesse poder para o desempenho de uma condição dentro do seu alcance, então com justiça poderia lhes exigir que voassem e uma ordem para fazê-lo seria obrigatória. Mas com relação à exigência, a dotação de poder não seria graça, mas justiça. Com relação aos resultados ou ao prazer de voar, a dotação de poder seria graça. Quer dizer, poderia a graça de Deus me dar poder para voar, para que eu tivesse o prazer e o proveito do vôo, de forma que, com relação a esses resultados, a dotação de poder fosse considerada um ato da graça. Mas, se Deus exige que eu voe por uma questão de dever, Ele com justiça tem de prover o poder ou a capacidade para voar. Esta seria uma condição necessária da ordem que impõe a obrigação moral.

Nem iria absolutamente variar o caso se eu tivesse asas e, por abuso, perdesse o poder de voar. Nesta circunstância, considerando-a em relação ao prazer, proveito e aos resultados do vôo, a restauração do poder de voar poderia e seria um ato da graça. Mas se Deus ainda me ordenasse a voar, Ele teria, como condição de minha obrigação, de restabelecer o poder. É vão e absurdo dizer, como foi dito, que em tal caso, embora eu perdesse o poder da obediência, isto não alteraria o direito de Deus reivindicar obediência. Esta afirmação origina-se da pressuposição absurda de que a vontade de Deus faz ou cria a lei, em vez de meramente declarar e obrigar a lei da natureza. Vimos em aulas anteriores que a única lei ou regra de ação que é ou pode ser obrigatória num agente moral, é a lei da natureza, ou apenas aquele curso de querer e agir, temporariamente satisfatório à sua natureza e às suas relações. Vimos que a vontade de Deus nunca faz ou cria a lei; ela só a declara e a obriga. Se, pois, a natureza de um agente moral fosse de alguma maneira mudada de modo que a sua vontade já não fosse mais livre para agir em conformidade ou em oposição à lei da natureza, se Deus ainda o considerasse obrigado a obedecer, teria, com justiça, em relação à sua exigência, de restabelecer a liberdade ou capacidade desse agente. Suponha que alguém, pelo abuso do intelecto, tivesse perdido o seu uso e se tornado um perfeito idiota, haveria alguma possibilidade de ser lhe exigido que entendesse e obedecesse a Deus? Certamente que não. Assim também não lhe poderiam exigir que fizesse alguma coisa que lhe tivesse ficado naturalmente impossível. Analisando-se a questão à luz do prazer e dos resultados da obediência, o restabelecimento do poder seria um ato da graça. Mas à luz do dever ou da ordem de Deus, o restabelecimento de poder para obedecer é um ato da justiça e não da graça. Chamar isto de graça seria abusar da língua e confundir os termos.

 

Em que sentido é possível uma capacidade da graça?

1. Como vimos há pouco, não no sentido de que a dotação de poder para obedecer a uma ordem possível seja apropriadamente um dom da graça. A graça é favor imerecido, algo não exigido pela justiça, a qual, dadas as circunstâncias, poderia ser negada, sem injustiça. Nunca seria justo exigir a quem quer que fosse aquilo que, dadas as circunstâncias, é impossível. Como já foi dito, em relação à exigência e como condição da justiça divina, a dotação de poder adequada ao desempenho do que é ordenado é condição inalterável da justiça da ordem. Isto que falo é uma verdade primeira da razão, uma verdade em todos os lugares e por todos os homens necessariamente presumida e conhecida. Uma capacidade da graça em obedecer uma ordem ou um mandamento é absurda e impossível.

2. Mas uma capacidade da graça considerada em relação às vantagens do resultado da obediência é possível. Por exemplo, suponha que um empregado que se sustenta a si e sua família com o seu salário fique por culpa própria incapaz de trabalhar e ganhar o salário. O seu patrão pode despedi-lo por justa causa e deixá-lo ir com a família para o asilo de pobres. Mas, neste estado de incapacidade, o seu patrão não pode com justiça lhe exigir trabalho. Nem mesmo poderia fazê-lo se em caráter absoluto fosse o dono do empregado. Agora suponha que o patrão restaurasse o empregado à sua antiga força. Se lhe exigisse serviço, teria de restaurar-lhe a força como condição da justiça desta exigência, pelo menos na medida que a obediência fosse possível. Esta seria mera justiça. Mas suponha que o patrão restaurasse a capacidade do empregado em ganhar o seu sustento e o de sua família mediante o trabalho. Isto, examinado em relação ao bem do empregado e aos resultados da restauração de sua capacidade para si e a família, é uma questão da graça. Em relação ao direito do patrão exigir o trabalho do empregado, a restauração da capacidade em obedecer é um ato da justiça. Mas em relação ao bem do empregado e aos benefícios que lhe resultam por meio desta restauração da capacidade e tornando possível mais uma vez que sustente a si e a família, a dotação da capacidade é corretamente um ato da graça.

Vamos aplicar isto ao caso sob consideração. Suponha que a raça de Adão tenha perdido sua agência livre com o primeiro pecado adâmico e, assim, tenha entrado em um estado no qual a santidade e a conseqüente salvação fossem impossíveis. Se Deus ainda lhe exigisse obediência, deveria com justiça restaurar-lhe a capacidade. Analisada sob o aspecto do direito de Deus ordenar e do dever de os homens obedecerem, esta restauração é apropriadamente uma questão de justiça. Mas suponha que Deus os colocasse novamente em circunstâncias que lhes tornassem possíveis a santidade e a conseqüente salvação. Analisada sob o aspecto do bem e proveito dos homens, esta restauração da capacidade é apropriadamente uma questão da graça.

Uma capacidade da graça em obedecer, vista com relação à ordem a ser obedecida, é impossível e absurda. Mas uma capacidade da graça para ser salvo, vista com relação à salvação, é possível. Não há prova de que o gênero humano jamais tenha perdido a sua capacidade de obedecer, quer pelo primeiro pecado de Adão, quer pelo pecado de cada um. Pois isto implicaria, como vimos, em os homens deixarem de ser livres, tornando-se agentes necessários. Mas se Deus lhes tivesse restaurado a capacidade de obedecer, tudo o que poderia ser dito com justiça neste caso é que, na medida que o direito de Deus de ordenar está relacionado ao ato de obedecer, a restauração dessa capacidade seria um ato de justiça. Mas no que tange à restituição da salvação, seria um ato da graça.

3. Mas foi afirmado ou, antes, presumido pelos defensores do dogma sob consideração que a Bíblia ensina a doutrina de uma incapacidade natural e de uma capacidade da graça no homem para obedecer os mandamentos de Deus.

Admito, de fato, que se interpretarmos as Escrituras sem levar em conta alguma regra justa de interpretação, esta pressuposição pode encontrar apoio na Palavra de Deus, da mesma forma que quase todo absurdo pode encontrar e encontra. Mas uma moderada porção de atenção a uma das regras mais simples, mais universais e mais importantes de interpretar a língua, quer da Bíblia, quer não, despojará este dogma absurdo da menor semelhança de apoio da Palavra de Deus. A regra à qual recorro é esta: "Que a linguagem sempre será interpretada de acordo com o tema do discurso".

Quando usado em relação aos atos da vontade, o termo "não pode", interpretado por esta regra, não deve ser entendido com o sentido de ser uma impossibilidade própria. Se eu digo que não posso aceitar cinco dólares por meu relógio, todo o mundo sabe que não quero e não posso estar afirmando uma impossibilidade própria. Assim, quando o anjo disse a Ló: "Apressa-te, escapa-te para ali; porque nada poderei fazer, enquanto não tiveres ali chegado" (Gn 19.22), quem alguma vez entendeu estar ele afirmando uma impossibilidade natural ou de qualquer tipo? Tudo o que poderia ter querido dizer era que não desejava fazer nada até que Ló estivesse em lugar seguro. Da mesmíssima forma, quando a Bíblia fala de nossa incapacidade em obedecer os mandamentos de Deus, tudo o que pode significar é que temos tão pouca vontade que, sem a persuasão divina, de fato não deveremos e nem iremos obedecer. Este certamente é o sentido no qual essa linguagem é usada na vida comum. Assim, nunca pensamos em tal linguagem quando falamos em atos de vontade querendo significar qualquer coisa mais do que má vontade, um estado no qual a vontade está fortemente comprometida com uma direção oposta.

Quando Josué disse aos filhos de Israel: "Não podereis servir ao SENHOR, porquanto é Deus santo" (Js 24.19), todo o contexto, como também a natureza do caso, mostra que ele não quis afirmar uma impossibilidade natural ou de qualquer tipo. No mesmo contexto, Josué exige que sirvam ao Senhor e os leva a se esforçarem para solenemente servi-lo. O sucessor de Moisés indubitavelmente quis dizer que com corações maus não poderiam oferecer um culto aceitável ao Senhor e, portanto, insistiu que imediata e voluntariamente pusessem de lado a maldade de seus corações, consagrando-se ao serviço do Senhor. Assim deve ser em todos os casos onde o termo "não pode" e expressões similares são usados em referência a atos de vontade; quando empregados desta forma, eles não devem ser compreendidos como se estivessem implicando numa impossibilidade própria, sob pena de fazer violência a toda regra sóbria de interpretar a língua. O que se pensaria de um juiz ou advogado, no recinto de um tribunal, que interpretasse a linguagem de uma testemunha sem qualquer consideração à regra: "Esta linguagem deve ser entendida de acordo com o tema do discurso". Um advogado que, em seu argumento aos jurados, tentasse interpretar a linguagem de uma testemunha, dando a entender que a expressão "não pode", quando relacionada a um ato de vontade, significasse uma impossibilidade própria, logo teria essa estupidez reprovada pelo juiz que advertiria o orador para não falar tolice num tribunal; possivelmente acrescentaria que tais afirmações absurdas só seriam permissíveis no púlpito. Afirmo novamente que é um absoluto abuso e perversão das leis da língua interpretar assim a Bíblia no que tange a fazer com que ela ensine uma incapacidade no homem de querer como Deus quer. A essência da obediência a Deus consiste em querer. A linguagem usada em referência à obediência deve, quando corretamente compreendida, ser interpretada conforme o tema do discurso. Por conseguinte, quando usados em referência a atos de vontade, tais expressões como "não pode" significam categoricamente nada mais do que uma escolha em direção oposta.

Mas alguém pode perguntar: Não há graça em tudo o que é feito pelo Espírito Santo para tornar o homem sábio para a salvação? Sim, respondo, é verdade. É a graça, a grande graça, só porque a doutrina de uma incapacidade natural no homem em obedecer a Deus não é verdadeira. E só porque o homem é plenamente capaz de obedecer e injustamente se recusa a fazê-lo que toda a influência que Deus aplica para fazê-lo querer é um dom e uma influência da graça. A graça é grande apenas em proporção à capacidade do pecador em cumprir as exigências de Deus e à força de sua oposição voluntária ao seu dever. Se o homem era apropriadamente incapaz de obedecer, não poderia haver graça em lhe dar a capacidade de obedecer, quando a dotação da capacidade é considerada em relação ao mandamento. Mas consideremos o homem livre, possuidor da capacidade natural de obedecer todas as exigências de Deus, e toda a sua dificuldade consistindo em um coração mau, ou, o que é a mesma coisa, em uma má vontade em obedecer, então uma influência por parte de Deus designada e tendenciosa a fazê-lo querer, é realmente graça. Mas despoje o homem de sua liberdade, torne-o naturalmente incapaz de obedecer e você torna a graça impossível, na medida que está relacionada com a sua obrigação de obedecer.

Mas é alegado em defesa do dogma da incapacidade natural e de uma capacidade da graça que a Bíblia representa o homem como dependente da influência da graça do Espírito Santo para toda a santidade e, por conseguinte, para a vida eterna. Eu respondo que se admite ser esta a representação da Bíblia, mas a pergunta é: Em que sentido ele é dependente? Sua dependência consiste em uma incapacidade natural de aceitar o Evangelho e ser salvo? Ou consiste em um egoísmo voluntário -- em uma má vontade em obedecer as condições da salvação? O homem é dependente do Espírito Santo para lhe dar uma capacidade própria em obedecer a Deus ou ele só é dependente no sentido de que não aceitará o Evangelho a menos que o Espírito Santo o faça querer? A última opção, além da questão razoável, é a verdadeira. Esta é a representação universal das Escrituras. A dificuldade a ser superada é que em toda a Bíblia está representada somente a má vontade do pecador. Não pode possivelmente ser outra coisa, pois a vontade é o fazer exigido por Deus. "Se há prontidão de vontade, será aceita segundo o que qualquer tem e não segundo o que não tem" (2 Co 8.12).

Mas, afirma-se, se o homem pode querer por si mesmo, que necessidade há de persuasão ou influência divina para fazê-lo querer? Eu perguntaria: Suponha que um homem seja capaz de não querer pagar suas dívidas, haveria necessidade de alguma influência para fazê-lo querer? Pois a influência divina é necessária para fazer um pecador querer, ou induzi-lo a querer como Deus quer, somente pela mesma razão que a persuasão, solicitação, argumento ou a vara são necessários para fazer nossos filhos submeterem a sua vontade à nossa. O fato de que a Bíblia representa o pecador de algum modo dependente da influência divina para ter um coração justo, não implica mais numa incapacidade do pecador do que o fato de as crianças serem dependentes do seu bom comportamento -- muitas vezes por causa da disciplina completa e oportuna dos seus pais -- implica numa incapacidade própria de elas obedecerem os pais sem castigo.

A Bíblia em todos os lugares e em todos os sentidos presume a liberdade da vontade. Este fato se salienta em alto relevo em todas as páginas da inspiração divina. Mas esta é apenas a pressuposição necessariamente feita pela inteligência universal do homem. A linguagem forte freqüentemente encontrada nas Escrituras sobre o assunto da incapacidade do homem em obedecer a Deus só é designada a representar a força do seu egoísmo voluntário e a inimizade contra Deus, e nunca a implicar numa incapacidade natural própria. E, pois, uma perversão bruta e muito prejudicial das Escrituras, como também uma contradição da razão humana, negar a capacidade natural, ou, o que é a mesma coisa, a agência livre natural do homem e sustentar uma incapacidade natural própria em obedecer a Deus e o dogma absurdo de uma capacidade da graça para fazer o nosso dever.

1. A questão da capacidade é de grande importância prática. Negar a capacidade do homem em obedecer as ordens de Deus é representar Deus como um Senhor cruel que exige uma impossibilidade natural de suas criaturas sob pena da condenação eterna. Isto necessariamente é gerado na mente que tem pensamentos duros acerca de Deus. A inteligência não pode ser satisfeita com a justiça de tal requisição. De fato, na medida que este erro ganha possessão da mente e obtém consentimento, na mesma medida se desculpa natural e necessariamente pela desobediência ou por não cumprir os mandamentos de Deus.

2. A incapacidade moral de Edwards é uma real incapacidade natural, e assim foi entendida por pecadores e religiosos. Quando entrei no ministério, descobri que a persuasão de uma incapacidade absoluta por parte dos pecadores em se arrependerem e crerem no Evangelho é quase universal. Quando exortei os pecadores e religiosos a que sem demora cumprissem com o seu dever, freqüentemente deparei com uma implacável oposição de pecadores, religiosos e ministros. Eles desejavam que eu dissesse aos pecadores que não podiam se arrepender, e que tinham de esperar o tempo de Deus, isto é, de Deus ajudá-los. Era comum nomearem grupos de pessoas somente para me perguntar se era minha opinião que os pecadores poderiam ser cristãos sempre que lhes agradassem, e se eu achava que alguma categoria de pessoas poderia se arrepender, crer em Deus e obedecê-lo sem o esforço e poder novo-criador do Espírito Santo. A igreja estava quase universalmente firmada na convicção de uma depravação moral física e, é claro, numa convicção da necessidade de uma regeneração física e também na convicção de que os pecadores têm de esperar para serem regenerados pelo poder divino, enquanto ficavam passivos. Os religiosos também têm de esperar para serem reavivados até que Deus, em soberania misteriosa, viesse e os reavivasse. No que toca ao reavivamento da religião, eles estavam em grande parte firmados na convicção de que o homem não tinha mais agência em provocá-lo do que em provocar chuva. Tentar efetuar a conversão de um pecador ou promover um reavivamento era uma tentativa de tirar a obra das mãos de Deus, fazê-la com a própria força e impor aos pecadores e religiosos que fizessem o mesmo. O uso vigoroso de meios e medidas para promover uma obra da graça foi considerado por muitos como heresia. Estava levantando um estímulo de sentimento animal e perversamente interferindo na prerrogativa de Deus. Os dogmas abomináveis da depravação moral física, ou uma constituição pecadora com uma conseqüente incapacidade natural, falsamente chamada de moral, e a necessidade de uma regeneração física e passiva, tinham esfriado o coração da igreja e colocado os pecadores num sono fatal. Esta é a tendência natural de tais doutrinas.

3. Que fique bem entendido antes de encerrarmos este assunto que não negamos, mas defendemos corajosamente que o plano inteiro de salvação e todas as influências, providenciais e espirituais, que Deus aplica na conversão, santificação e salvação dos pecadores, é graça do princípio ao fim, e que eu nego o dogma de uma capacidade da graça, porque rouba de Deus a sua glória. Na verdade nega a graça do Evangelho. Os instigadores deste esquema, disputando pela graça do Evangelho, na realidade a negam. Que graça haveria que surpreendesse o céu e a terra e fizesse os anjos desejarem bem atentar (1 Pe 1.12), ao dar capacidade àqueles que nunca a tiveram e nunca repeliram sua capacidade de obedecer as exigências de Deus? De acordo com essa corrente, todos os homens perderam a sua capacidade em Adão e não por seu próprio ato. Deus ainda lhes exigia obediência sob pena da morte eterna. Agora Ele pode, de acordo com esta visão do assunto, da mesma forma razoavelmente ordenar a todos os homens, sob pena da morte eterna, que voem ou desfaçam tudo o que Adão tenha feito, ou que façam alguma outra incapacidade natural, como ordenar-lhes que sejam santos, arrependam-se e creiam no Evangelho. Mas, pergunto outra vez, que possível graça haveria em Deus lhes dar poder para obedecê-lo? Ter exigido obediência sem dar o poder teria sido infinitamente injusto. Admitir a pressuposição de que os homens realmente tenham perdido a capacidade de obedecer em Adão e chamar de graça esta dotação de capacidade pela qual tais teólogos disputam, é um abuso de linguagem, um absurdo e uma negação da verdadeira graça do Evangelho, algo que não deve ser tolerado. Eu rejeito o dogma de uma capacidade da graça, porque envolve uma negação da verdadeira graça do Evangelho. Eu sustento que o Evangelho, com todas as suas influências, inclusive o dom do Espírito Santo para convencer, converter e santificar a alma, é inteiramente um sistema da graça. Mas para sustentar isso, também tenho de sustentar que Deus poderia com justiça ter exigido obediência dos homens sem lhes ter feito estas providências. E para sustentar a justiça de Deus em exigir obediência, tenho de admitir e sustentar que a obediência era possível ao homem.

Que não seja afirmado, então, que negamos a graça do Evangelho glorioso do Deus bendito e que negamos a realidade e necessidade das influências do Espírito Santo para converter e santificar a alma, e que esta influência é a da graça, pois tudo isto defendemos com muito vigor. Mas sustento-o com base em que os homens são capazes de fazer o seu dever e que a dificuldade não se encontra numa incapacidade própria, mas num egoísmo voluntário, numa má vontade em obedecer o Evangelho bendito. Digo novamente que rejeito o dogma de uma capacidade da graça, da forma como entendo que os seus instigadores o defendem, não porque o nego simplesmente, mas apenas porque nega a graça do Evangelho. A negação da capacidade é na verdade uma negação da possibilidade da graça na questão da salvação do homem. Eu admito a capacidade do homem e sustento que ele é capaz, mas totalmente pouco disposto a obedecer a Deus. Portanto, sustento coerentemente que todas as influências aplicadas por Deus para fazer o homem querer são provenientes da graça livre que abunda por meio de Cristo Jesus.

 

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