A VERDADE DO EVANGELHO
TEOLOGIA SISTEMÁTICA

Charles Finney

 

AULA 6

TENDÊNCIAS PRÁTICAS DAS VÁRIAS TEORIAS DO FUNDAMENTO DA OBRIGAÇÃO MORAL

 

Já se observou que essa é uma questão altamente prática de interesse e importância inigualável. Discuti e examinei algumas das principais teorias com o propósito de preparar o caminho para a exposição dos resultados práticos dessas várias teorias e para mostrar que resultam legitimamente em alguns dos erros mais destrutivos que aleijam a Igreja e o curso do mundo.

 

Começarei com a teoria que considera a soberania de Deus o fundamento da obrigação moral.

Um resultado legítimo e necessário dessa teoria é uma concepção totalmente errada tanto do caráter de Deus como da natureza e desígnio de seu governo. Se a vontade de Deus é o fundamento da obrigação moral, segue-se que Ele é um soberano arbitrário. Ele mesmo não está sob a lei e não possui uma regra que regule sua conduta nem pela qual Ele mesmo ou qualquer outro ser possa julgar o caráter moral dele. Ele não possui nem pode possuir caráter moral; pois o caráter moral sempre e necessariamente implica lei moral e obrigação moral. Se a vontade de Deus não está ela mesma sob a lei de sua razão infinita ou, em outras palavras, se ela não é conformada à lei imposta a Ele por sua inteligência, então sua vontade é e deve ser arbitrária no pior sentido; ou seja, no sentido de não considerar a razão ou a natureza e relações dos agentes morais. Mas se sua vontade está sob a lei de sua razão, se Ele age por princípio ou possui motivos bons e benevolentes para sua conduta, então sua vontade não é o fundamento da obrigação moral, mas aqueles motivos que estão revelados na inteligência divina; em consideração a isso ela afirma a obrigação moral ou que Ele deve desejar em conformidade com esses motivos. Em outras palavras, se o valor intrínseco do próprio bem-estar de Deus e do universo for o fundamento da obrigação moral; se a razão de Deus afirma sua obrigação de escolher isso como seu fim último e de consagrar suas energias infinitas para a realização disso; e se a vontade de Deus conforma-se a essa lei, segue-se:

(1) Que sua vontade não é o fundamento da obrigação moral.

(2) Que Ele possui razões infinitamente boas e sábias para o que deseja, diz e faz.

(3) Que Ele não é arbitrário, mas sempre age de acordo com princípios corretos e por motivos que, quando universalmente conhecidos, compelirão o respeito e até a admiração de todo ser inteligente no universo.

(4) Que a criação e o governo providencial e moral são meios necessários para um fim infinitamente sábio e bom, e que os males existentes são só incidentes inevitáveis nessa ordem infinitamente sábia e benevolente, e que, embora grandes, são indefinidamente os menores de dois males. Ou seja, são infinitamente menos maus do que seria a ausência da criação ou de governo. Pode-se conceber que seria possível adotar um plano de administração que evitasse os presentes males; mas se aceitarmos que Deus tem sido governado pela razão na seleção do fim que tem em vista e no uso dos meios para sua concretização, seguir-se-á que os males são menores do que seriam sob qualquer outro plano de administração; ou, pelo menos, que o presente sistema, com todos os seus males, é o melhor que a sabedoria e o amor infinitos poderiam adotar.

(5) Os males incidentais, portanto, não aviltam de modo algum a evidência da sabedoria e bondade de Deus; pois em tudo isso Ele não está agindo por caprichos, ou dolo, ou uma soberania arbitrária, mas agindo em conformidade com a lei de sua inteligência infinita e, é claro, possui motivos infinitamente bons e importantes para o que faz e permite que se faça -- motivos tão bons e tão importantes, que Ele não poderia agir de outra maneira sem violar as leis da própria inteligência e, com isso, cometer um pecado infinito.

(6) Segue-se também que há base para uma confiança, amor e submissão perfeitos à sua vontade divina em tudo. Ou seja, se sua vontade não é arbitrária, mas conformada à lei de sua infinita inteligência, então é obrigatória como nossa regra de ação, porque revela infalibilidade de acordo com a infinita inteligência. Podemos estar sempre inteiramente seguros em obedecer a todas as exigências divinas e em nos submeter a todas as suas dispensações, por mais misteriosas que sejam, estando seguros de que são perfeitamente sábias e boas. Não só é seguro fazê-lo, como temos a infinita obrigação de fazê-lo, não porque sua vontade arbitrária impõe a obrigação, mas porque nos revela de maneira infalível o fim que devemos escolher e os meios indispensáveis para garanti-lo. Sua vontade é lei, não no sentido de originar e impor a obrigação por sua soberania arbitrária, mas no sentido de ser uma revelação tanto do fim que devemos buscar como dos meios pelos quais o fim possa ser assegurado. Aliás, essa é a única idéia adequada de lei. Ela não impõe obrigação em hipótese alguma, mas só revela a obrigação. A lei é uma condição, não o fundamento, da obrigação. A vontade de Deus é uma condição da obrigação, só na medida em que é indispensável para nosso conhecimento do fim que devemos buscar e dos meios pelos quais esse fim deve ser assegurado. Quando há conhecimento deles, há obrigação; tenha Deus revelado ou não sua vontade.

A verdade precedente e muitas outras verdades importantes, um pouco menos importantes que as já mencionadas e por demais numerosas para serem ora notadas de maneira distinta, seguem-se do fato de que o bem do ser, e não a vontade arbitrária de Deus, é o fundamento da obrigação moral. Mas nem uma delas é ou pode ser verdade, se sua vontade for o fundamento da obrigação. E ninguém que seja coerente ao sustentar e crer que a vontade de Deus é o fundamento da obrigação pode sustentar as seguintes verdades precedentes ou crer nelas nem, aliás, sustentar alguma verdade da Lei ou do Evangelho ou crer nelas. Também não pode, se for totalmente coerente, ter uma concepção correta da verdade do governo moral de Deus. Vejamos se pode.

(1) Pode crer que a vontade de Deus é sábia e boa, a menos que admita que ela está sujeita à lei de sua inteligência e assim creia? Se for coerente em sustentar que a vontade divina é o fundamento da obrigação moral, ele precisa ou negar que sua vontade tenha alguma evidência de que seja sábia ou boa, ou sustentar o absurdo de que tudo o que Deus deseja é sábio e bom, simplesmente porque Deus o deseja, e que se Ele desejasse algo diretamente oposto do que deseja, aquilo seria igualmente sábio e bom. Mas isso é um absurdo suficientemente palpável para confundir alguém que tenha raciocínio e agência moral.

(2) Se for coerente em sustentar e crer que a vontade soberana de Deus é o fundamento da obrigação moral, não pode considerá-lo possuidor de algum caráter moral porque não há um padrão pelo qual se possa julgar seus desejos e atos; pois, pela suposição, Ele não possui uma regra inteligente de ação e, portanto, não pode possuir caráter moral, uma vez que não é um agente moral e não pode ter, Ele mesmo, qualquer idéia do caráter moral das próprias ações; pois, de fato, na pressuposição em questão, não têm uma sequer. Qualquer um, pois, que sustente que Deus não está sujeito à lei moral imposta a Ele pela própria razão, mas, pelo contrário, que sua vontade soberana é o fundamento da obrigação moral, deve, se coerente, negar que Ele tenha caráter moral e deve negar que Deus seja um ser inteligente ou então admitir que Ele é infinitamente perverso, por não conformar sua vontade à lei da própria inteligência; e por não ser guiado pela sua infinita razão, em lugar de estabelecer uma soberania arbitrária da vontade.

(3) Aquele que sustenta que a vontade soberana de Deus é o fundamento da obrigação moral, em vez de ser uma revelação da obrigação, se for totalmente coerente, não pode ter nem assinalar uma boa razão tanto para confiar nele como para submeter-se a Ele. Se Deus não possui motivos bons e sábios para o que ordena, por que deveríamos obedecer a Ele? Se Ele não possui motivos bons e sábios para o que faz, por que deveríamos submeter-nos a Ele?

Responderiam que, se recusarmos, estaremos em perigo e, portanto, é sábio fazê-lo, mesmo que Ele não tenha bons motivos para o que faz e exige? A isso respondo que é impossível, pela suposição em debate, obedecer ou submeter-se a Deus com o coração. Se não conseguirmos ver bons motivos, mas, por outro lado, garante-se que não há motivos bons ou sábios para os mandamentos e conduta divinos, torna-se para sempre naturalmente impossível, pelas leis da natureza, render mais que uma obediência e submissão fingida. Sempre que não compreendemos a razão de uma exigência divina ou de uma dispensação da providência divina, a condição para uma obediência sincera à primeira e submissão à segunda é a suposição de que Deus tem boas e sábias razões para ambas. Mas pressuponha-se o contrário, a saber, que Ele não tem boas e sábias razões para uma nem outra, e tornam-se impossíveis a obediência sincera, a confiança e a submissão. É perfeitamente claro, portanto, que quem sustenta coerentemente a teoria em questão jamais consegue conceber corretamente a Deus ou a nada que diga respeito à sua Lei, Evangelho ou Governo, moral ou providencial. É impossível para Ele ter uma piedade inteligente. Sua religião, se tiver alguma, deve ser pura superstição, uma vez que não conhece o verdadeiro Deus nem a verdadeira razão pela qual deva amar, crer ou submeter-se a Ele. Em suma, ele não conhece e, se coerente, nem pode conhecer, nada da natureza da verdadeira religião, e não possui algo como uma concepção correta do que se constitui virtude.

Mas não pensem que estou afirmando que ninguém que professe defender a teoria em questão tem algum conhecimento de Deus ou de alguma religião verdadeira. Não, felizmente eles são tão puramente teóricos nesse assunto e felizmente incoerentes consigo mesmos, que têm, afinal, um julgamento prático em favor da verdade. Eles não vêem as conseqüências lógicas de sua teoria, e obviamente não as adotam, e essa feliz incoerência é uma condição indispensável de sua salvação.

(4) Outra conseqüência perniciosa dessa teoria é que os que a defendem darão, é claro, orientações falsas aos pecadores em atitude de busca. Aliás, se forem ministros, todo o caráter de suas instruções deve ser falso. Eles precisam, se forem coerentes, não só apresentar Deus aos seus ouvintes como um soberano absoluto e arbitrário, como devem representar a religião como algo que consiste em submissão a uma soberania arbitrária. Se os pecadores indagam o que devem fazer para serem salvos, tais mestres devem responder em substância que devem lançar-se na soberania de uma Deus cuja lei é tão-somente expressão de sua vontade arbitrária, e cujas exigências e propósitos são, todos, fundamentados em sua soberania arbitrária. Esse é o Deus a quem devem amar, em quem devem crer e a quem devem servir com mente voluntária. Tais instruções são infinitamente diferentes das que seriam dadas por alguém que conheça a verdade. Ele apresentaria Deus a um interessado como alguém infinitamente razoável em todas as suas exigências e em todos os seus caminhos. Ele apresentaria a soberania de Deus como algo que consiste não em vontade arbitrária, mas em benevolência ou amor, dirigida pelo conhecimento infinito na promoção do máximo bem do ser. Ele apresentaria a lei de Deus, não como a expressão de sua vontade arbitrária, mas como algo fundamentado na natureza autônoma de Deus e na natureza dos agentes morais; como a própria regra agradável à natureza e relações dos agentes morais; que suas exigências não são arbitrárias, mas que o que se requer é aquilo e só aquilo que na natureza das coisas é indispensável ao máximo bem-estar dos agentes morais; que a vontade de Deus não dá origem à obrigação por algum decreto arbitrário, mas, pelo contrário, que Deus requer o que requer por ser aquilo obrigatório na natureza das coisas; que sua exigência não cria o direito, mas que Deus só requer o que seja natural e necessariamente direito. Esses e muitos outros fatores semelhantes recomendariam de maneira irresistível o caráter de Deus à inteligência humana, como alguém digno de confiança e um ser a quem é infalivelmente seguro e infinitamente razoável submeter-se.

O fato é que a idéia de soberania arbitrária é escandalosa e revoltante, não só para o coração humano, quer regenerado, quer não regenerado, mas também para a inteligência humana. A religião baseada em tal visão do caráter e governo divino, deve ser pura superstição e fanatismo crasso.

 

Examinarei em seguida os legítimos resultados da teoria da escola egoísta.

Essa teoria ensina que o interesse próprio é o fundamento da obrigação moral. Conversando com um notável defensor dessa filosofia, solicitei ao teórico que definisse obrigação moral, e esta foi a definição dada: "É a obrigação de um agente moral buscar a própria felicidade". Quanto à tendência prática desse teoria observo:

(1) Ela propicia direta e inevitavelmente a confirmação e o despotismo do pecado na alma. Todo pecado, como veremos adiante, resume-se num espírito de egoísmo ou numa disposição de buscar o bem para si, de acordo com suas relações consigo, e não de maneira imparcial e desinteressada. Essa filosofia representa esse espírito de egoísmo como virtude, e só exige que, em nossos esforços para garantir a felicidade própria, não interfiramos nos direitos de os outros a buscarem. Mas aqui é possível perguntar: quando esses filósofos insistem que a virtude consiste em desejar a felicidade própria e que, ao buscá-la, somos obrigados a ter respeito para com os direitos e felicidade dos outros, eles querem dizer que devemos ter uma consideração positiva ou meramente negativa dos direitos e felicidade dos outros? Se querem dizer que devemos ter uma consideração positiva dos direitos e felicidade dos outros, que seria isso, senão uma desistência da própria teoria em favor da verdadeira, a saber, que a felicidade de cada um deve ser estimada, por si, de acordo com seu valor intrínseco? Ou seja, que devemos ser desinteressada-mente benévolos? Mas se querem dizer que devemos considerar negativamente a felicidade de nosso próximo, ou seja, meramente não impedi-la, que é isso, senão a coisa mais absurda que se possa conceber? Quê! Não preciso cuidar ativamente da felicidade de meu próximo, não preciso desejá-la como um bem em si, pelo próprio valor dela, mas ainda assim devo cuidar para não impedi-la. Mas por quê? Ora, porque é intrinsecamente tão valiosa quanto a minha. Ora, se isso assinala um bom motivo pelo qual não devo impedi-la, é simplesmente porque assinala um bom motivo pelo qual devo desejá-la de maneira positiva e desinteressada; o que eqüivale à teoria verdadeira. Mas se isso não é motivo suficiente para impor a obrigação de desejá-la de maneira positiva e desinteressada, jamais pode impor a obrigação de evitar impedi-la, e então posso perseguir minha própria felicidade, do meu próprio jeito, sem a mínima consideração para com a de qualquer outro.

(2) Se essa teoria for verdadeira, seres pecadores e santos são exatamente iguais, no que diz respeito à intenção última, aquilo em que, conforme vimos, consiste todo o caráter. Eles têm precisamente o mesmo fim em vista, e a diferença está exclusivamente nos meios de que fazem uso para promover a felicidade própria. Que os pecadores estão buscando a própria felicidade é uma verdade de que eles têm consciência. Se os agentes morais têm obrigação de buscar a felicidade própria como o fim supremo da vida, segue-se que os seres santos o fazem. Assim, seres santos e pecadores são exatamente iguais,. no que diz respeito ao fim para o qual vivem; a única diferença estaria, conforme observamos, nos meios de que fazem uso para promover esse fim. Mas observem que não se pode assinalar nenhuma razão, de acordo com essa filosofia, pela qual eles usam diferentes meios, apenas que diferem em julgamento a respeito deles; pois lembrem-se que essa filosofia nega que somos obrigados a ter uma consideração positiva e desinteressada do bem de nosso próximo; e, é claro, nenhuma consideração benevolente impede o santo de usar os mesmos meios usados pelos perversos. Onde, então, fica a diferença no caráter deles, embora usem essa diversidade de meios? Repito: não há diferença. Se essa diferença não for atribuída à benevolência desinteressada em um e ao egoísmo no outro, realmente não pode haver entre eles diferença alguma no caráter. De acordo com essa teoria, nada é direito em si, exceto a intenção de promover minha felicidade; e tudo é certo ou errado, conforme intente promover ou não esse resultado. Pois tenha-se em mente que se, estritamente, a obrigação moral só diz respeito à intenção última, segue-se que só a intenção última é certa ou errada em si, e tudo o mais é certo ou errado conforme provenha de uma intenção última certa ou errada. Isso precisa ser verdade.

Ademais, se minha felicidade for o fundamento de minha obrigação moral, segue-se que esse é o fim último que devo almejar e que nada é certo ou errado em si, a não ser essa intenção ou seu oposto; e, além disso, que tudo o mais deve ser certo ou errado em mim, conforme proceda disso ou de uma intenção oposta. Posso fazer e, na suposição de que essa teoria seja verdadeira, sou obrigado a fazer tudo o que, segundo o meu entender, promova minha felicidade, e isso, não por seu valor intrínseco como parte do bem universal, mas por ser minha. Buscá-la como uma parte da felicidade universal, e não por ela ser minha, seria agir de acordo com a verdadeira teoria, ou a teoria da benevolência desinteressada, que essa teoria nega.

(3) Segundo essa teoria, não devo amar a Deus acima de tudo e ao meu próximo como a mim mesmo. Se eu amar a Deus e ao próximo, isso deve ser só um meio de promover minha felicidade própria, o que não é amá-los, mas amar acima de tudo a mim mesmo.

(4) Essa teoria ensina um erro radical a respeito do caráter e do governo de Deus; e os defensores coerentes dela não podem deixar de nutrir concepções fundamentalmente falsas a respeito do que se constitui santidade ou virtude, seja em Deus, seja no homem. Eles não conhecem nem podem conhecer a diferença entre a virtude e o vício.

(5) Os mestres dessa teoria devem fatalmente desviar todos os que são coerentes ao seguir suas instruções. Na pregação, devem, se coerentes, apelar totalmente à esperança e ao medo. Todas as suas instruções devem tender a confirmar o egoísmo. Todos os motivos que apresentam, se forem coerentes, tendem somente a instigar neles um zelo por garantir a felicidade própria. Se orarem, será apenas para implorar o auxílio de Deus para alcançar seus fins egoístas.

Aliás, é impossível que essa teoria não cegue seus defensores para as verdades fundamentais da moralidade e da religião, e é difícil conceber que outra coisa possa servir ao diabo de maneira mais eficiente que o repisar de uma filosofia como essa.

 

Examinemos em seguida os resultados naturais e, caso seus defensores sejam coerentes, necessários do utilitarismo.

Essa teoria, vocês sabem, ensina que a utilidade de uma ação ou escolha torna-a obrigatória. Ou seja, sou obrigado a desejar o bem, não pelo valor intrínseco do bem, mas porque desejar o bem favorece a produção do bem -- a escolher um fim, não por causa do valor intrínseco do fim, mas porque desejá-lo tende a garanti-lo. O absurdo dessa teoria foi exposto o suficiente. Só resta observar seus resultados práticos legítimos.

(1) Ela faz com que a atenção desvie-se natural e, posso dizer, necessariamente daquilo em que consiste a moralidade, a saber, a intenção última. Parece que os cúmplices dessa trama só devem ter em mente a ação externa ou, no máximo, volições executivas, quando afirmam que a tendência de uma ação é o motivo da obrigação de executá-la. Parece impossível que afirmem que a razão para escolher um fim último deva ser ou possa ser a tendência de a escolha garanti-la. Trata-se de contradição tão palpável, que é difícil crer que tenham em mente a intenção última quando fazem a afirmação. Um fim último é sempre escolhido por seu valor intrínseco, não porque a escolha tende a garanti-lo. Como, portanto, é possível sustentarem que a tendência de a escolha garantir um fim último é a razão de uma obrigação de fazer tal escolha? Mas se não têm em vista a intenção última quando falam de obrigação moral, estão discutindo algo que, estritamente falando, está fora do âmbito da moralidade. Um utilitarista coerente, portanto, não pode conceber corretamente a natureza da moralidade ou virtude. Ele não pode ser coerente ao sustentar que a virtude consiste em desejar o máximo bem-estar de Deus e do universo como um fim último, ou por si, mas deve, pelo contrário, confinar suas idéias de obrigação moral a volições e atos externos em que, estritamente falando, não há qualquer moralidade e, ademais, atribuir a elas uma razão inteiramente falsa, a saber, sua tendência de garantir um fim, em lugar do valor do fim que tendem a garantir.

Agora é o momento adequado para falar da doutrina da conveniência, doutrina mantida com rigor pelos utilitaristas e com igual rigor atacada pelos que sustentam a teoria do direito. Segundo ela, tudo o que seja conveniente é correto, uma vez que a conveniência de um ato ou medida é o fundamento da obrigação de executar tal ação ou adotar tal medida. É fácil ver que isso eqüivale simplesmente a dizer que a utilidade de uma ação ou medida é o motivo da obrigação de executar tal ação ou adotar tal medida. Mas, conforme vimos, a utilidade, a tendência, a conveniência, é só uma condição da obrigação de executar um ato externo ou uma volição executiva, mas jamais o fundamento da obrigação -- este sempre é o valor intrínseco do fim com que a volição, ação ou medida mantém uma relação de meio. Não me surpreende que os que defendem a teoria do direito façam objeção a isso, embora me surpreenda com o motivo que, sendo coerentes, devem alegar para essa obrigação, a saber, que qualquer ação ou volição (exceto a intenção última) pode ser correta ou errada por si, à parte de sua conveniência ou utilidade. Isso é absurdo o suficiente e contradiz terminantemente a doutrina dos próprios defensores da teoria do direito: que, no sentido estrito, a obrigação moral só diz respeito à intenção última. Se a obrigação moral só diz respeito à intenção última, então nada, senão a intenção última, pode ser correto ou errado por si. E tudo o mais, ou seja, todas as volições executivas e atos externos, deve ser correto ou errado (no único sentido em que o caráter moral pode ser atribuído a isso) conforme procede de uma intenção última correta ou errada. Essa é a única forma em que os defensores da teoria do direito podem ser coerentes ao aceitar a doutrina da conveniência, ou seja, que ela diz respeito exclusivamente às volições executivas e atos externos. E só podem aceitar isso na pressuposição de que as volições executivas e os atos externos não possuem, no sentido estrito, qualquer caráter moral inerente, antes, são corretos ou errados só quando e porque procedem necessariamente de uma intenção última correta ou errada. Todas as escolas que sustentam essa doutrina, a saber, que a obrigação moral só diz respeito à intenção última, devem, para serem coerentes, negar que qualquer coisa possa ser correta ou errada per se, senão a intenção última. Além disso, precisam sustentar que a utilidade, conveniência ou tendência de promover o fim último em que termina a intenção última, é sempre uma condição da obrigação de concretizar as volições e atos que mantenham com esse fim a relação de meio. E mais, devem sustentar que a obrigação de empregar aqueles meios deve estar fundamentada no valor do fim, e não na propensão de o meio garanti-lo; pois a menos que o fim seja intrinsecamente valioso, a propensão do meio não pode impor a obrigação de empregá-los. A tendência, utilidade, conveniência, portanto, são meras condições da obrigação de empregar determinado meio, mas jamais o fundamento da obrigação. A obrigação com respeito a um ato externo é sempre fundamentada no valor do fim com que esse ato sustenta uma relação de meio, e a obrigação é condicionada pela percepção da tendência dos meios para garantir tal fim. A conveniência jamais pode ser levada em consideração na escolha de um fim último ou daquilo em que consiste o caráter moral, a saber, a intenção última. O fim deve ser escolhido por si. A intenção última é correta ou errada em si, e não há relação alguma entre questões de utilidade, conveniência ou tendência e a obrigação de concretizar a intenção última, existindo apenas uma razão última para isso, a saber, o valor intrínseco do fim em si. É verdade, portanto, que tudo quanto seja conveniente é correto, não por aquele motivo, mas só sob tal condição. Assim, a pergunta: é conveniente? -- a respeito de um ato externo -- é sempre adequada; pois é sob essa condição que subsiste a obrigação do ato externo. Mas a respeito da intenção última ou da escolha de um fim último, jamais cabe uma indagação sobre a conveniência dessa escolha ou intenção, sendo a obrigação fundamentada apenas no valor percebido e intrínseco do fim, e sendo a obrigação moral isenta de qualquer condição, exceto a posse dos poderes de agência moral, com a percepção do fim em que a intenção deve terminar, a saber, o bem da existência universal. Mas o erro do utilitarista, que a conveniência é o fundamento da obrigação moral, é básico porque, na realidade, não o pode ser em hipótese alguma. Já disse e aqui repito que todas as escolas que sustentam que a obrigação moral só diz respeito à intenção última devem, se coerentes, sustentar que a utilidade, conveniência, etc, percebidas são uma condição da obrigação de desenvolver qualquer ato externo, ou, dizendo de outra maneira, de usar qualquer meio para garantir o alvo da benevolência. Assim, na prática ou na vida diária, deve necessariamente haver lugar para a verdadeira doutrina da conveniência. Os que atacam a conveniência, portanto, não sabem o que dizem nem a respeito de que afirmam. É, porém, impossível prosseguir na prática, dentro da filosofia utilitarista. Esta ensina que a tendência de uma ação garantir um bem, e não o valor intrínseco do bem, é o fundamento da obrigação de realizar a ação. Mas isso é por demais absurdo na prática. Pois, a menos que o valor intrínseco do fim seja pressuposto como o fundamento da obrigação de escolhê-lo, é impossível afirmar a obrigação de executar um ato para garantir tal fim. A insensatez e perigo do utilitarismo é que não percebe o verdadeiro fundamento da obrigação moral e, por conseguinte, a verdadeira natureza da virtude ou santidade. Um utilitarista coerente não consegue conceber corretamente nem um nem outro.

Os ensinos de um utilitarista coerente devem necessariamente abundar de erros perniciosos. Em lugar de representar a virtude como algo que consiste em benevolência desinteressada ou na consagração da alma para o máximo bem da existência em geral, por si, deve representá-la como algo que consiste totalmente no uso de meios para promover o bem, ou seja, como algo que consiste totalmente em volições executivas e atos externos, que, de modo estrito, não possuem em si caráter moral. Assim, o utilitarismo coerente inculca basicamente idéias falsas sobre a natureza da virtude. É claro que deve ensinar igualmente coisas errôneas a respeito do caráter de Deus -- o espírito e o significado de sua lei -- a natureza do arrependimento -- do pecado -- da regeneração -- e, em suma, de toda doutrina prática da Bíblia.

 

Conseqüências práticas e tendência da teoria do direito.

Deve-se recordar que essa filosofia ensina que o direito é o fundamento da obrigação moral. Para seus defensores, a virtude consiste em desejar o direito pelo direito, em lugar de desejar o bem pelo bem, ou, de modo mais estrito, em desejar o bem pelo direito, e não pelo bem; ou, conforme vimos, o fundamento da obrigação consiste no fim último a ser almejado em tudo, e não no máximo bem do ser por si. A partir dessa teoria, as seguintes conseqüências devem agora dizer respeito só à defesa coerente da teoria do direito.

(1) Se a teoria do direito estiver correta, há uma lei de direito inteiramente distinta da lei do amor ou benevolência e contrária a ela. Os defensores dessa teoria com freqüência pressupõem, talvez inconscientemente, a existência de tal lei. Eles falam de uma porção de coisas que seriam certas ou erradas em si, inteiramente à parte da lei da benevolência. Além disso, chegam a afirmar ser possível conceber que um ato direito possa necessariamente tender para o sofrimento universal e nele resultar e que, nesse caso, temos a obrigação de fazer o que seja direito ou desejar o direito, embora o sofrimento universal seja o resultado necessário. Isso pressupõe e afirma que o direito não possui uma relação necessária com o desejo do máximo bem do ser por si, o que eqüivale a dizer que a lei do direito não só é distinta da lei da benevolência, como pode ser diretamente contrária a ela; que um agente moral pode ter a obrigação de desejar como fim último algo que deve promover e garantir sofrimento universal. Os que defendem a teoria do direito sustentam que o direito seria direito, e que a virtude seria virtude, mesmo que esse resultado fosse uma conseqüência necessária. Que é isso, senão sustentar que a lei moral pode requerer dos agentes morais que empenhem o coração e se consagrem ao que é necessariamente subversivo para o bem-estar do universo inteiro? E que é isso, senão pressupor que pode ser lei moral algo que exija um curso de desejo e ação inteiramente inconsistente com a natureza e as relações dos agentes morais? Assim, a virtude e a benevolência não só podem ser diferentes, como opostas; e a benevolência pode ser pecado. Isso não só se opõe à nossa razão, como é difícil conceber erro mais sério e danoso aos costumes ou filosofia.

Nada é nem pode ser direito como escolha última, senão a benevolência. Nada pode ser lei moral, senão a que exige que o máximo bem-estar de Deus e do universo seja escolhido como um fim último. Se a benevolência é correta, isso deve ser manifesto. A teoria do direito menospreza e desvirtua a própria natureza da lei moral. Que todos observem o absurdo crasso que sustentam: que a lei moral pode requerer um curso de desejo que necessariamente resulta em sofrimento universal e perfeito. Qual seria, então, pode-se perguntar, a ligação entre a lei moral e a natureza e relações dos agentes morais, senão que zomba delas, insulta-as e as esmaga sob os pés? A lei moral é e deve ser a lei da natureza, ou seja, adequada à natureza e relações dos agentes morais. Mas pode uma lei ser adequada à natureza e relações dos agentes morais, se exige um curso de ação que resulta necessariamente no sofrimento universal? A teoria do direito, portanto, não só menospreza, mas contradiz redondamente a própria natureza da lei moral, estabelecendo uma lei de direito em oposição frontal à lei da natureza.

(2) Essa filosofia tende naturalmente ao fanatismo. Concebendo, como faz, o direito como algo distinto e, com freqüência, oposto à benevolência, ela zomba ou desafia a idéia de inquirir o que evidentemente exige o máximo bem. Ela insiste que tais e tais coisas são certas ou erradas em si, sem nenhuma relação com o que possa ser exigido pelo máximo bem. Tendo assim em mente uma lei de direito distinta da benevolência e, talvez, oposta a ela, a que conduta temerária não pode essa filosofia conduzir? Essa é de fato a lei do fanatismo. A tendência dessa filosofia é ilustrada no espírito de muitos reformadores que lutam com amargura pelo direito que, afinal, não fará bem algum a ninguém.

(3) Essa filosofia ensina uma falsa moralidade e uma falsa religião. Ela exalta o direito acima de Deus e apresenta a virtude como algo que consiste no amor ao direito em lugar do amor de Deus. Ela exorta os homens a desejar o direito pelo direito, em vez do bem do ser pelo bem, ou pelo ser. Ela nos ensina a inquirir: Como devo agir corretamente? em vez de: Que promoverá o bem do universo? Ora, o que mais promove o máximo bem do ser é direito.

Almejar o máximo bem-estar de Deus e do universo é direito. Usar os meios necessários para promover esse fim é direito; e tudo o que seja usado como meio ou em ato externo é correto, caso usado por este motivo, a saber, ter como alvo promover o máximo bem-estar de Deus e do universo. Mas a teoria do direito apresenta um curso oposto. Ela diz: Deseje o direito pelo direito, ou seja, como um fim; e quanto ao meio, não indague o que é manifestamente a favor do máximo bem-estar do ser, pois com isso você não tem relação alguma; sua tarefa é desejar o direito pelo direito. Caso indaguemos como saber o que é direito, ela não nos dirige à lei da benevolência como o único padrão, mas nos dirige para uma idéia abstrata do direito como uma regra máxima, sem nenhuma consideração pela lei da benevolência ou amor. Ela diz que o direito é direito porque é direito, e não que o direito é conformidade com a lei da benevolência, sendo direito por esse motivo. Ora, com certeza tal ensino é radicalmente falso, subvertendo toda sã moralidade e verdadeira religião.

(4) Conforme já vimos, essa filosofia não apresenta a virtude como algo que consiste no amor de Deus ou de Cristo ou nosso próximo. A coerência exige que os partidários dessa trama forneçam instruções fundamentalmente erradas a pecadores que estejam buscando a Deus. Em vez de apresentar Deus e todos os seres santos como pessoas devotadas ao bem público, e em vez de exortar os pecadores a amarem a Deus e ao próximo, essa filosofia deve apresentar Deus e os seres santos como pessoas consagradas ao direito pelo direito; e precisam exortar os pecadores que perguntam o que devem fazer para serem salvos a desejar o direito pelo direito, a amar o direito, a deificar o direito e a prostrar-se num culto ao direito. Há muito dessa falsa moralidade e religião no mundo e na Igreja. Os incrédulos são os grandes adeptos dessa religião e com freqüência a manifestam em dose tão elevada quanto alguns mestres religiosos da teoria do direito. Trata-se de uma filosofia grave, implacável, sem amor, sem Deus, sem Cristo, e nada senão uma feliz incoerência impede seus defensores de manifestá-la ao mundo sob essa luz. Alei do direito, quando concebida como algo distinto da lei de benevolência ou oposto a ela, é uma perfeita camisa-de-força, um colarinho de ferro, um laço de morte.

Essa filosofia apresenta toda guerra, toda escravidão e muitas coisas como erros per se, sem insistir numa definição que implique necessariamente o egoísmo delas. Qualquer coisa é errada por si quando inclui e implica egoísmo, e não pode ser diferente. Toda guerra travada por propósitos egoístas é errada per se. Mas a guerra travada por propósitos benevolentes ou a guerra exigida pela lei da benevolência e comprometida com um propósito benevolente nem é errada em si nem errada em algum sentido próprio. Todo ato de prender homens em escravidão por motivações egoístas é errado em si, mas manter homens cativos em obediência à lei da benevolência não é errado, mas certo. E assim com tudo o mais. Portanto, quando se insiste que toda guerra e toda escravidão ou qualquer outra coisa são erradas em si, tal definição deve insistir em que implicam necessariamente egoísmo. Mas a teoria do direito, quando coerente, insistirá que toda guerra, toda escravidão e muitas outras coisas são erradas em si, sem considerar se violam ou não a lei da benevolência. Isso é coerente com tal filosofia, mas na realidade muito falso e absurdo. Aliás, qualquer filosofia que pressuponha a existência de uma lei de direito distinta da lei da benevolência e, talvez, oposta a ela, deve ensinar muitas doutrinas que guerreiam contra a razão e a revelação. Ela coloca os homens à caça de uma abstração filosófica como o supremo fim da vida, em lugar da realidade concreta do máximo bem-estar de Deus e do universo. Ela pilha a alma humana e transforma em ferro sólido todas as ternas sensibilidades de nosso ser. Tudo o que ela faz é ver o ser humano acima de tudo devotado a uma abstração, como a finalidade da vida humana. Ela deseja o direito pelo direito. Ou, de modo mais estrito, deseja o bem do ser, não por alguma consideração para com o ser, mas por causa da relação de adequação intrínseca ou correção que existe entre a escolha e seu objeto. Para isso ela vive, move-se e existe. Que tipo de religião é essa? Não desejo que entendam que eu esteja sustentando ou insinuando que, universal ou mesmo geralmente, os que defendem a teoria do direito de maneira expressa levem sua teoria ao seu limite legítimo, ou que manifestem o espírito que naturalmente gera. Não, fico muito feliz em reconhecer que para muitos e, talvez, a maioria deles trata-se de pura teoria, não sendo muito influenciados por ela na prática. Muitos deles estão entre os que considero os excelentes sobre a Terra, e sou feliz em contar entre eles os mais caros e valiosos amigos. Mas falo da filosofia, com suas conseqüências naturais, quando abraçadas não como mera teoria, mas adotadas de coração como regra de vida. É só em tais casos que aparecem seus frutos naturais e legítimos. Tenha-se em mente apenas que o direito é conformidade com a lei moral, que a lei moral é a lei da natureza ou a lei encontrada na natureza e relações dos agentes morais, a lei que requer exatamente aquele curso de desejo e ação que tende de maneira natural a garantir o máximo bem-estar de todos os agentes morais, que requer esse curso de desejo e ação pelo fim que deve ser almejado ou intentado por todos os agentes morais como o supremo bem e o único fim último da vida; digo que basta que essas verdades sejam mantidas em mente, e jamais se falará de um direito, ou de uma virtude, ou de uma lei, a que se deva obedecer quando necessariamente resulta em sofrimento universal; nem se imaginará que tal coisa seja possível.

 

 

Por fim, passo a analisar as implicações práticas do que considero a verdadeira teoria do fundamento da obrigação moral, a saber, que a natureza e o valor intrínsecos do máximo bem-estar de Deus e do universo são os únicos fundamentos da obrigação moral.

Quanto a essa filosofia observo:

Que se for verdadeira, toda a questão da obrigação moral é perfeitamente simples e inteligível; tão simples, aliás, que "o viajante, ainda que tolo, ali não consegue errar".

Por essa teoria, todo agente moral sabe em todos os casos possíveis o que é direito e jamais pode errar seu dever real.

Seu dever é desejar esse fim com todas as condições conhecidas e seus meios. Ao intentar esse fim com sinceridade e ao fazer o que se lhe surge com toda a luz que pode obter para estar ao máximo grau calculado para garantir esse fim, ele de fato cumpre seu dever. Se nesse caso ele se engana com respeito ao que seja o melhor meio para garantir esse fim, havendo intenção benevolente, ele não peca. Ele agiu corretamente, pois intentou conforme devia e agiu externamente conforme pensou ser seu dever, sob a melhor luz que podia obter. Esse, portanto, era seu dever. Ele não falhou no dever; porque o dever era intentar conforme intentou e, naquelas circunstâncias, agiu como agiu. De que outra maneira poderia ter agido?

Se um agente moral consegue saber o fim que almeja ou pelo qual vive, pode saber e só pode saber, a todo momento, se está certo ou errado. Tudo o que, nessa teoria, um agente moral precisa ter certeza é se ele vive para o fim certo, e isso, se for de todo honesto, ou desonesto, não tem como não saber. Caso pergunte o que é direito ou qual seu dever a qualquer momento, não precisa esperar uma resposta. É direito para ele intentar o máximo bem-estar do ser como um fim. Se fizer isso com honestidade, não poderá errar em seu dever, pois ao fazê-lo realmente cumpre todo o ser dever. Com essa intenção honesta, é impossível que não use os meios para promover esse fim, de acordo com a melhor luz que possui; e isso é direito. Ter os olhos fixos no máximo bem-estar de Deus e do universo é toda a moralidade estritamente considerada; e, nessa teoria, a lei moral, o governo moral, a obrigação moral, a virtude, o vício e toda a questão da moral e da religião são a perfeição da simplicidade. Se essa teoria for verdadeira, nenhuma mente honesta jamais se desviou do caminho do dever. Intentar o máximo bem do ser é direito e é dever. Nenhuma mente honesta deixa de buscar tenazmente esse fim. Mas na busca honesta desse fim, não pode haver pecado, não pode haver desvio no caminho do dever. O caminho do dever é e precisa ser o que realmente assim parece à mente benévola. Ou seja, deve ser seu dever agir em conformidade com suas convicções honestas. Isso é dever, isso é direito. Assim, segundo essa teoria, ninguém que seja de fato honesto ao buscar o máximo bem do ser jamais cometeu algum engano num sentido equivalente a cometer pecado.

Falei com muita clareza e, talvez, alguma severidade sobre os vários sistemas de erros, que não posso deixar de ver, quanto às questões mais fundamentais e importantes; com certeza não por falta de amor por aqueles que os defendem, mas pela preocupação há muito cultivada e que cresce dentro de mim, com a honra da verdade e pelo bem do ser. Se alguém tiver o trabalho de analisar este assunto para encontrar seus resultados práticos, conforme de fato desenvolvidos na opinião e práticas dos homens, com certeza conseguiria encontrar o nevoeiro teológico e filosófico que tanto desnorteia o mundo. E poderia ser diferente, uma vez que tal confusão de opiniões prevalece em questões fundamentais de moral e religião?

Como é possível que haja tanta profissão e tão pouca prática real de benevolência no mundo? Multidões de cristãos professos parecem não ter idéia de que a benevolência constitui a verdadeira religião; que nada mais a constitui; e que o egoísmo é pecado e totalmente incompatível com a religião. Continuam a viver indulgentes consigo mesmos e sonham com o Céu. Isso não ocorreria se a verdadeira idéia de religião, como algo que consiste em participar da benevolência de Deus, fosse plenamente desenvolvida em sua mente.

Não preciso discorrer sobre as implicações práticas das outras teorias que examinei; o que eu disse deve bastar como ilustração da importância de estar bem alicerçado nessa verdade fundamental. É aflitivo ver as concepções adotadas por multidões a respeito do verdadeiro espírito e significado da Lei e do Evangelho de Deus e, por conseguinte, da natureza da santidade.

Ao deixar este assunto, devo observar que todo sistema de filosofia moral que não defina de maneira correta uma ação moral e a verdadeira base da obrigação deve ser fundamentalmente deficiente. Além disso, se coerente, deve ser altamente pernicioso e perigoso. Mas se a ação moral for definida com clareza e correção, se a verdadeira base da obrigação for estabelecida de maneira clara e correta; e se uma e outra forem constantemente mantidas diante dos olhos, tal sistema será de valor incalculável. Seria totalmente inteligível, reforçando a convicção a cada leitor inteligente. Mas não tenho ciência de que tal sistema exista. Pois, pelo que sei, são todos falhos, ao definir uma ação moral e não fixar os olhos na intenção última, mantendo-os ali como se fosse a sede do caráter moral e de onde deriva o caráter de todas as nossas ações; ou logo esquecem-se disso e consideram meros atos executivos certos ou errados, sem referência à intenção última. Creio que todos falham ao não definir com clareza a base da obrigação e, por conseguinte, são falhos em sua definição da virtude.

 

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