A VERDADE DO EVANGELHO
TEOLOGIA SISTEMÁTICA

Charles Finney

 

AULA 3

GOVERNO MORAL

 

A idéia básica de governo é a de direção, orientação, controle por meio de uma regra ou leis ou de acordo com elas.

Todo governo é e deve ser ou moral ou físico; ou seja, toda direção e controle devem ser exercidos de acordo com uma lei moral ou física; pois não pode haver leis que não sejam morais nem físicas.

O governo físico é controle exercido por uma lei de necessidade ou força, em distinção à lei do livre-arbítrio ou liberdade. É o controle da substância, em oposição ao livre-arbítrio. O único governo de tal substância, no que se distingue do livre-arbítrio, é capaz, é e precisa ser físico.

Estados e mudanças, de matéria ou mente, que não sejam atos de livre-arbítrio, devem estar sujeitos à lei de necessidade. Devem, portanto, pertencer ao departamento do governo físico. O governo físico, pois, é a administração da lei física, ou da lei de força.

O governo moral consiste na declaração e administração da lei moral. É o governo do livre-arbítrio pelos motivos, em contraposição ao governo da substância pela força. O governo físico preside e controla os estados físicos e as mudanças de substância ou constituição, e todos os estados e mudanças involuntários. O governo moral preside e controla ou procura controlar os atos do livre-arbítrio: rege os estados e mudanças de mente inteligentes e voluntários. É um governo de motivações, em oposição ao governo de força -- controle exercido, ou que se procura exercer, de acordo com a lei de liberdade, em oposição à lei da necessidade. É a administração da moral em oposição à lei física.

O governo moral inclui a dispensação de recompensas e punições, sendo administrado por meios muito complicados e vastos como o total das obras, e a providência, os caminhos e a graça de Deus.

 

A razão fundamental do governo moral

O governo deve ser fundamentado numa razão boa e suficiente, ou não é direito. Ninguém tem o direito de prescrever regras para os outros e controlar-lhes a conduta, a menos que haja algum bom motivo para fazê-lo. Deve haver uma necessidade de governo moral, caso contrário sua administração é tirana. O governo moral é indispensável ao máximo bem-estar do universo de agentes morais. O universo depende disso como meio de garantir o bem máximo. Essa dependência é uma razão boa e suficiente para a existência do governo moral. Que se compreenda, portanto, que o governo moral é uma necessidade dos seres morais e, por conseguinte, correto.

Nossa natureza e situação exigem que estejamos sob um governo moral; porque nenhuma comunidade pode harmonizar-se com perfeição em todas as suas idéias e sensações, sem conhecimento perfeito, ou, no mínimo, o mesmo grau de conhecimento de todos os assuntos em que são chamados a agir. Mas jamais existiu nem existirá alguma comunidade que possua a mesma medida exata de conhecimento e cujos membros, portanto, concordem por completo em todos os seus pensamentos, idéias e opiniões. Mas se não concordarem em opinião, não se harmonizarão em todas as coisas no que diz respeito a seus modos de conduta. E, pois, preciso existir em cada comunidade algum padrão ou regra de dever a que todos os indivíduos da comunidade devem conformar-se. É preciso que haja alguma cabeça ou mente controladora, cuja vontade seja lei e cujas decisões sejam consideradas infalíveis por todos os súditos do governo. Por mais diversos que sejam em nível intelectual, nisto todos precisam concordar: que a vontade do legislador é correta e universalmente a regra de dever. Ela precisa ser autorizada e não só consultiva. É necessário que haja uma penalidade ligada a ela e contraída por ela para cada ato de desobediência a essa vontade. Caso se persista na desobediência, a menor penalidade que pode ser infligida com coerência é a exclusão dos privilégios concedidos pelo governo. O bem, portanto, do universo exige de maneira imperiosa que haja um governo moral.

 

De quem é o direito de governar?

Acabamos de ver que o máximo bem-estar do universo exige o governo moral e é o alvo deste. Deve, portanto ter o direito e dever de governar aquele cujos atributos físicos e morais melhor o qualificam para garantir o alvo do governo. A ele devem dirigir-se todos os olhos e corações, para preencher esse posto, para exercer esse controle, para administrar todas as recompensas e punições justas. É tanto seu direito como dever governar.

Que Deus é um governante moral, inferimos:

1. Pela nossa natureza. Pelas próprias leis de nosso ser, afirmamos naturalmente ser dele a responsabilidade por nossa conduta. Sendo Deus nosso criador, reportamo-nos naturalmente a Ele para o exercício correto de nossos poderes. Uma vez que nosso bem e a glória de Deus dependem de nossa conformidade com a mesma regra a que Ele conforma todo seu ser, ele tem a obrigação moral de requerer que sejamos santos como Ele é santo.

2. Seus atributos naturais lhe dão condições de manter a relação de governante moral com o universo.

3. Seu caráter moral também lhe dá condições de manter essa relação.

4. Sua relação com o universo como criador e mantenedor, quando considerada em conjunto com a necessidade de um governo e com sua natureza e os atributos, confere-lhe o direito de governo universal.

5. Sua relação com o universo e nossas relações com Ele e uns com os outros tornam-lhe obrigatório estabelecer e administrar um governo moral sobre o universo. Ser-lhe-ia errado criar um universo de seres morais e, depois, recusar-se a administrar um governo moral sobre eles ou negligenciar tal governo, uma vez que o governo é uma necessidade da natureza e das relações deles.

6. A felicidade dele deve exigi-lo, uma vez que Ele não pode ficar feliz, a menos que aja de acordo com sua consciência.

7. Se Deus não é um governante moral, não é sábio. A sabedoria consiste na escolha dos melhores alvos e no uso dos meios mais adequados para atingir tais alvos. Se Deus não é um governante moral, é inconcebível que tenha tido em mente algum alvo importante na criação de seres morais ou que tenha escolhido o alvo mais desejável.

8. A conduta ou providência de Deus indica claramente um desejo de exercer uma influência moral sobre agentes morais.

9. Sua providência indica claramente que o universo da mente é governado por leis morais ou por leis adequadas à natureza de agentes morais.

10. Se Deus não é um governante moral, todo o universo, naquilo que temos meios de conhecê-lo, é forjado para confundir a humanidade no que diz respeito à sua verdade fundamental. Todas as nações têm acreditado que Deus é um governante moral.

11. Precisamos reprovar o caráter de Deus se em algum momento chegar ao nosso conhecimento o fato de que Ele criou agentes morais e depois não exerceu sobre eles nenhum governo moral.

12. A Bíblia, que se tem provado uma revelação de Deus, contém um sistema muito simples, mas abrangente de governo moral.

13. Se estivermos enganados a respeito do fato de estarmos sujeitos a um governo moral, não teremos certeza de coisa alguma.

 

Que se implica no direito de governar?

1. Pelo que se acaba de dizer, deve ser evidente que o direito de governar implica a necessidade de um governo como meio de assegurar um alvo intrinsecamente valioso.

2. Também que o direito de governar implica o dever ou obrigação de governar. Não pode haver direito, nesse caso, sem a correspondente obrigação; pois o direito de governar fundamenta-se na necessidade de governo, e a necessidade de governo impõe uma obrigação de governar.

3. O direito de governar implica obrigação de obediência por parte do súdito. Não pode haver direito ou dever de o governante governar, a menos que seja dever do súdito obedecer. O governante e os súditos são igualmente dependentes do governo, como meio indispensável para promoção do máximo bem. O governante e o súdito devem, portanto, estar sob obrigação mútua: um, de governar e o outro, de ser governado ou obedecer. Um deve procurar governar, o outro precisa submeter-se a ser governado.

4. O direito de governar implica o direito e dever de dispensar recompensas e punições justas e necessárias -- distribuir recompensas proporcionais ao mérito e penalidades proporcionais ao demérito, sempre que o interesse público exigir sua execução.

5. Implica obrigação, por parte do súdito, de aceitar de bom grado qualquer medida que possa ser necessária para garantir o alvo do governo e, em caso de desobediência, submeter-se à punição merecida e, também, caso necessário, ajudar na inflição da penalidade da lei.

6. Implica obrigação, por parte de ambos, legislador e legislado, de estar sempre pronto e, havendo oportunidade, fazer todo sacrifício pessoal e privado exigido pelo máximo bem público -- atender de bom grado em qualquer emergência e exercer qualquer grau de altruísmo que possa resultar ou resulte num bem de maior valor para o público que o sacrificado pelo indivíduo ou por qualquer número de indivíduos, sendo sempre compreendido que os sacrifícios voluntários presentes terão uma recompensa final.

7. Implica o direito e dever de empregar qualquer grau de força indispensável para a manutenção da ordem, a execução de leis sadias, a supressão de insurreições, a punição de rebeldes e desordeiros e a manutenção da supremacia da lei moral. E impossível que o direito de governar não implique isso, e negar esse direito é negar o direito de governar. Caso ocorresse alguma emergência e um governante não tivesse o direito de usar os meios indispensáveis para garantir a ordem e a supremacia da lei, no momento que ocorresse essa emergência cessaria e precisaria cessar o direito que Deus tem de governar: pois é impossível que tenha o direito de governar, a menos que, ao mesmo tempo e pelos mesmos motivos, seja seu dever governar; e é absurdo dizer que é seu direito e dever governar e, ao mesmo tempo, que Ele não tem o direito de usar os meios indispensáveis de governo. Caso seja questionado se é possível uma emergência como a que está em consideração, respondo que se ocorressem circunstâncias sob as quais o sacrifício necessário para manter sobrepujasse o bem a ser obtido pelo prevalecimento do governo, isso criaria a emergência sob consideração, em que o direito de governar cessaria.

 

Os limites desse direito

O direito de governar é e precisa ter exatamente a mesma dimensão da necessidade de governo. Vimos que o direito de governar fundamenta-se nas necessidades dos seres morais. Em outras palavras, o direito de governar fundamenta-se no fato de que o máximo bem dos agentes morais não pode ser garantido, a não ser por meio do governo. Mas para evitar enganos e para corrigir impressões errôneas às vezes nutridos, devo apresentar o que não fundamenta o direito de governar. O limite do direito deve, conforme se verá, depender do fundamento do direito. O direito deve ser tão amplo quanto sua razão de ser. Se a razão do direito estiver errada, os limites do direito não poderão ser determinados, sendo necessariamente também errados.

1. O direito de governar o universo não pode ser fundamentado no fato de que Deus mantém com ele uma relação de Criador. Em si, isso não é motivo pelo qual Deus deva governá-lo, a menos que precise ser governado -- a menos que algum bem resulte do governo. A menos que haja alguma necessidade de governo, o fato de Deus ter criado o universo não pode lhe dar o direito de governá-lo.

2. O fato de Deus ser o proprietário do universo não é motivo pelo qual deva governá-lo. A menos que para o bem dele mesmo ou para o bem do universo, ou para o bem de ambos, exija-se um governo, a relação de proprietário não pode conferir o direito de governar. Nem Deus nem qualquer outro ser pode possuir seres morais, no sentido de ter o direito de governá-los, caso o governo seja totalmente desnecessário e possa resultar em nenhum bem para Deus ou suas criaturas. O governo, em tal caso, seria perfeitamente arbitrário e insensato e, por conseguinte, um ato injusto, tirânico e perverso. Deus não possui tal direito. Não há possibilidade de existir tal direito em hipótese alguma.

3. O direito de governar não pode ser fundamentado no fato de que Deus possui todos os atributos naturais e morais exigidos para a administração do governo moral. Esse fato é sem dúvida uma condição do direito, pois sem essas qualificações Ele não teria o direito, por mais necessário que fosse o governo. Mas a posse desses atributos não pode conferir o direito independentemente da necessidade de governo, pois melhores que sejam suas qualificações para governar, ainda assim, a menos que o governo seja necessário para garantir a própria glória dele e o máximo bem-estar do universo, Ele não possui o direito de governá-lo. Possuir as qualificações exigidas é a condição, e a necessidade de governo é o fundamento do direito de governar. Mais estritamente, o direito fundamenta-se no valor intrínseco dos interesses a serem garantidos pelo governo e é condicionado pelo fato de que o governo é o meio necessário para garantir o alvo.

4. O direito de governar também não é conferido pelo valor dos interesses a serem garantidos nem meramente pela circunstância da necessidade de governo, sem relação com as condições mencionadas logo acima. Se os atributos naturais e morais de Deus não o qualificassem para manter essa relação melhor que qualquer outro, o direito não poderia ser conferido a Ele por nenhum outro fato ou relação.

5.O direito de governar não é nem pode ser um direito abstrato baseado em razão alguma. A idéia desse direito não é uma idéia última, no sentido de nossa inteligência afirmar o direito, sem atribuir alguma razão em que se fundamente. A inteligência humana não pode dizer que Deus possui o direito de governar porque Ele possui tal direito; e que isso é razão suficiente e toda razão que se pode dar. Nossa razão não afirma que o governo é correto porque é correto e que se trata de uma verdade primeira, uma idéia maior. Se fosse, a vontade arbitrária de Deus seria lei e não se poderia estabelecer limites ao seu direito de governar. Se o direito que Deus tem de governar é uma verdade primeira, uma verdade, fato, idéia maior, fundamentada em nenhum motivo assinalável, Ele tem o direito de legislar o mínimo ou o máximo, com toda a arbitrariedade, desnecessidade, absurdidade e injúria possíveis, e não se faria qualquer injustiça nem se poderia fazer; pois Ele teria, por suposto, direito de governar não fundamentado em alguma razão e, é claro, sem nenhum limite. Ao destacar qualquer outra razão como o fundamento do direito de governar, senão o valor dos interesses a serem garantidos e a necessidade de governo, buscar-se-á em vão algum limite para o direito. Mas descobrindo o fundamento e a condição do direito, vemos de imediato que o direito deve ter a mesma dimensão da razão em que se fundamenta; em outras palavras, deve ser limitado por um fato e só por ele: de que até ali, e não depois dali, o governo é necessário para o bem máximo do universo. Nenhuma legislação pode ser válida no Céu ou na Terra -- nenhum decreto pode impor obrigações, exceto sob a condição de que tal legislação é exigida para o bem máximo de governante e governados. Legislação desnecessária é legislação inválida. Governo desnecessário é tirania. Não podem, em caso algum, estar fundamentados no direito. Deve-se, porém, observar que é freqüente -- e no governo de Deus universalmente verdadeiro -- que o soberano, e não o súdito, deva ser o juiz do que sejam legislação e governo necessários. Não havendo governo, portanto, as leis devem ser desprezadas ou rejeitadas porque somos incapazes de ver alguma necessidade delas e, assim, a sabedoria delas. A menos que sejam palpavelmente desnecessárias e, por conseguinte, insensatas e injustas, é preciso respeitá-las e lhes prestar obediência como males menores que o desacato e a desobediência, ainda que não consigamos ver a sensatez delas no momento. Sob o governo de Deus jamais pode haver alguma dúvida nem, é claro, algum espaço para desconfiança e hesitação no que diz respeito ao dever de obediência.

 

 

OBRIGAÇÃO MORAL

A idéia de obrigação ou dever é uma idéia de razão pura. É uma concepção simples e racional e, falando de maneira estrita, não admite definição, uma vez que não há termos mais simples pelos quais possa defini-la. Obrigação é um termo pelo qual expressamos uma concepção ou idéia que todos os homens possuem, conforme se manifesta na língua universal dos homens. Todos os homens têm idéias de certo e errado e têm palavras com que expressam essas idéias e, talvez, nenhuma idéia revele-se com mais freqüência entre os homens que a de dever ou obrigação. O termo não pode ser definido, por um motivo simples: é compreendido tão bem e de maneira tão universal, que não precisa nem admite que se expresse em alguma linguagem mais simples e definida que a própria palavra obrigação.

 

As condições da obrigação moral

Há uma distinção de importância fundamental entre a condição e a base da obrigação. A base da obrigação é a consideração que cria ou impõe a obrigação, a razão fundamental da obrigação. A esse respeito farei uma análise no devido lugar. No momento definirei as condições da obrigação. Mas aqui preciso observar que há várias formas de obrigação. Por exemplo, a obrigação de escolher um fim último de vida como o bem máximo do universo; obrigação de escolher as condições necessárias desse fim, como a santidade, por exemplo; e obrigação de propor esforços executivos para garantir esse fim. As condições de obrigação variam com a forma da obrigação, como perceberemos com maior clareza ao longo de nossas investigações.

Uma condição de obrigação em qualquer forma particular é uma obrigação sine qua non naquela forma particular. É que, sem ela, não poderia existir uma obrigação naquela forma, e ainda assim não é a razão fundamental da obrigação. Por exemplo, a posse dos poderes de agência moral é uma condição da obrigação de escolher o máximo bem do ser em geral como um fim último ou por para o próprio bem. Mas o valor intrínseco desse alvo é a base da obrigação. Essa obrigação não poderia existir sem a posse dessas capacidades, mas a posse dessas capacidades não pode por si criar a obrigação de escolher o bem em preferência ao mal do ser. A diferença intrínseca entre o bem e o mal é a base da obrigação de desejar um em lugar de outro. Primeiro definirei as condições de que dependem todas as obrigações e, sem as quais, não pode existir obrigação de maneira alguma e depois passarei a indicar as condições de distintas formas de obrigação.

1. A agência moral é universalmente uma condição de obrigação moral. Os atributos de agência moral são intelecto, sensibilidade e livre-arbítrio.

(1) O intelecto inclui, entre outras funções que não precisamos alistar, a razão, a consciência e a autoconsciência. Conforme já se disse em outra ocasião, a razão é a faculdade ou função intuitiva do intelecto. Ela dá, pela intuição direta, as seguintes verdades entre outras: o absoluto -- por exemplo, certo e errado; o necessário -- o espaço existe; o infinito -- o espaço é infinito; o perfeito -- Deus é perfeito -- a lei de Deus é perfeita, etc. Em suma, é a faculdade que intui as relações morais e afirma a obrigação moral de agir conforme as relações morais percebidas. E a faculdade que postula todas as verdades a priori da ciência, seja matemática, filosófica, teológica ou lógica.

A consciência é a faculdade ou função do intelecto que reconhece a conformidade ou desconformidade do coração e da via com a lei moral segundo é revelada na razão e também premia o elogio à conformidade e condena a desconformidade com tal lei. Ela também afirma que a conformidade com a lei moral merece recompensa e que a desconformidade merece punição. Ela também tem um poder propulsionador ou impulsivo, pelo qual insta a conformidade e denuncia a desconformidade da vontade com a lei moral. Parece, em certo sentido, que ela possui o poder de retribuição.

A consciência é a faculdade ou função de autoconhecimento. É a faculdade que reconhece a existência própria, ações mentais e estados, juntamente com os atributos da liberdade ou necessidade, pertencentes a essas ações ou estados.

"Consciência é a mente no ato de conhecer a si própria". Por consciência sei que sou -- que afirmo que o espaço existe -- que também afirmo que o todo é igual a todas as suas partes -- que cada efeito deve ter uma causa, e muitas verdades desse tipo. Tenho consciência não só dessas afirmações, mas também de que a necessidade é a lei dessas afirmações, que não posso afirmar outra coisa a respeito dessa classe de verdades. Também tenho consciência de escolher sentar-me à minha escrivaninha e escrever, e tenho igual consciência de que a liberdade é a lei dessa escolha. Ou seja, tenho consciência de necessariamente considerar-me livre por completo nessa escolha e afirmar minha capacidade de ter escolhido não me sentar à escrivaninha e de ser agora capaz de escolher não me sentar e escrever. Estou tão consciente de afirmar a liberdade ou necessidade de meus estados mentais quanto estou dos estados em si. A consciência nos dá nossa existência e atributos, nossos atos e estados mentais e todos os atributos e fenômenos de nossa existência dos quais temos algum conhecimento. Em suma, todo nosso conhecimento nos é dado pela consciência. O intelecto é uma receptividade em contraposição a um poder voluntário. Todos os atos e estados do intelecto estão sob a lei de necessidade ou lei física. A vontade pode comandar a atenção do intelecto. Seus pensamentos, percepções, afirmações e todos os seus fenômenos são involuntários, estando sob a lei de necessidade. Disso temos consciência. Outra faculdade indispensável à agência moral é:

(2) Sensibilidade. Essa é a faculdade ou susceptibilidade de sentir. Toda sensação, desejo, emoção, paixão, dor, prazer e, resumindo, todo tipo e grau de sentimento, na acepção que o termo sentimento costuma ser usado, é um fenômeno dessa faculdade. Essa faculdade supre a condição cronológica da idéia do valor e, assim, do certo e do errado e da obrigação moral. A experiência de prazer ou felicidade desenvolve a idéia do valor, assim como a percepção do corpo desenvolve a idéia do espaço. A não ser por essa faculdade, a mente não poderia ter idéia do valor e, assim, do valor da obrigação moral, nem do certo e do errado, nem do louvável e do condenável.

O amor-próprio é um fenômeno desse departamento da mente. Consiste num desejo constitucional de felicidade e implica um pavor correspondente da desgraça. Sem dúvida é por essa tendência constitucional que primeiro se desenvolve a idéia racional do valor intrínseco da felicidade ou deleite. Sem dúvida, os animais têm prazer, mas não temos indícios de que possuem a faculdade da razão, no sentido em que defini o termo. Por conseguinte, eles não possuem, supomos, a concepção racional do valor intrínseco do prazer. Eles buscam o prazer por um mero impulso de sua natureza animal, sem, supomos, tanto uma concepção de lei moral, obrigação, certo e errado.

Mas sabemos que os agentes morais possuem essas idéias. O amor-próprio é constitucional. Sua gratificação é a condição cronológica para a razão desenvolver a idéia do intrinsecamente valioso para a existência. Essa idéia desenvolve a da lei moral, ou, em outras palavras, a afirmação de que esse bem intrínseco deve ser universalmente escolhido e buscado para o bem dele mesmo.

A sensibilidade, como o intelecto, é uma receptividade ou simplesmente um passivo, em distinção à faculdade voluntária. Todos os seus fenômenos estão sob a lei de necessidade. Tenho consciência de que não posso, por nenhum esforço direto, sentir quando e como desejo. Essa faculdade é tão correlata ao intelecto que, quando o intelecto é intensamente ocupado com certas considerações, a sensibilidade é afetada de certa maneira, e certas sensações existem na sensibilidade por uma lei de necessidade. Tenho consciência de que quando certas condições são preenchidas, tenho necessariamente certas sensações e então, quando essas condições não são preenchidas, não posso estar sujeito a essas sensações. Sei pela consciência que minhas sensações e todos os estados e fenômenos da sensibilidade estão só indiretamente sob o controle de minha vontade. Pelo desejo, posso dirigir meu intelecto à consideração de certos assuntos e só desse modo afetar minha sensibilidade, produzindo dado estado de sensações. Por outro lado, então, se existem na sensibilidade certas sensações que desejo suprimir, sei que não posso aniquilá-las pelo desejo direto de tê-las fora da existência; mas, pelo desvio de minha atenção da causa delas, elas deixam de existir de modo evidente e necessário. Portanto, os sentimentos estão sob controle apenas indireto da vontade.

(3) A agência moral implica a posse de livre-arbítrio. Por livre-arbítrio entende-se o poder de escolher ou recusar-se a escolher, em cada situação, em obediência à obrigação moral. Livre-arbítrio implica o poder de gerar e tomar escolhas próprias e de exercer nossa soberania em cada situação de escolha em questões morais -- de decidir ou escolher de acordo com o dever ou não em todos os casos de obrigação moral. Que o homem não pode estar sob a obrigação moral de executar uma impossibilidade absoluta é uma verdade primeira da razão. Mas a causalidade do homem, toda sua capacidade de causalidade para executar ou fazer algo está em sua vontade. Se não puder ter vontade, nada pode fazer. Toda sua liberdade deve consistir em sua capacidade de desejar. Suas ações externas e seus estados mentais estão ligados às ações de sua vontade por uma lei de necessidade. Se desejo mover meus músculos, eles precisam mover-se, a menos que haja paralisia dos nervos de movimento voluntário ou uma resistência que se oponha ao poder de minhas volições e as vença. As seqüências de escolha ou volição estão sempre sob a lei da necessidade e, a menos que a vontade seja livre, o homem não possui liberdade; e se ele não possui liberdade, não é um agente moral, ou seja, é incapaz de ações morais e de caráter moral. O livre-arbítrio, portanto, no sentido acima definido, deve ser uma condição da agência moral e, é claro, da obrigação moral.

Assim como a consciência fornece a afirmação racional de que a necessidade é um atributo da afirmação da razão e dos estados da sensibilidade, de maneira igualmente inequívoca também fornece a afirmação racional de que a liberdade é um atributo das ações da vontade. Tenho consciência da afirmação de que eu poderia desejar diferente do que desejo em cada caso de obrigação moral, assim como tenho consciência da afirmação de que, em relação às verdades da intuição, não posso afirmar outra coisa senão o que afirmo. Tenho consciência de afirmar que sou livre quanto à vontade, assim como de afirmar que não sou livre ou voluntário quanto a meus sentimentos e intuições.

A consciência de afirmar a liberdade da vontade, ou seja, da capacidade de desejar de acordo com a obrigação moral ou de recusar-me a fazê-lo é uma condição necessária para a afirmação da obrigação. Por exemplo, nenhum homem afirma, nem pode afirmar, sua obrigação de desfazer todos os atos de sua vida passada e refazer toda a vida. Ele não pode afirmar estar sob tal obrigação, simplesmente porque não pode deixar de afirmar sua impossibilidade. Ele só pode afirmar sua obrigação de arrepender-se e obedecer a Deus no futuro, porque ele tem consciência de afirmar sua capacidade de fazer isso. A consciência da afirmação da capacidade de atender a alguma requisição é uma condição necessária da afirmação da obrigação de obedecer a tal requisição. Assim, nenhum agente moral pode afirmar estar sob a obrigação de executar uma impossibilidade.

2. Uma segunda condição da obrigação moral é luz, ou conhecimento de nossas relações morais o suficiente para desenvolver a idéia do dever. Isso implica:

(1) A percepção ou idéia do valor intrínseco.

(2) A afirmação da obrigação de desejar o valioso pelo próprio valor. Antes de poder afirmar minha obrigação de desejar, devo perceber, naquilo que se requer que eu deseje como um fim maior, algo que o torne digno de ser escolhido. Preciso ter um objeto de escolha. Tal objeto deve possuir, em si, aquilo que o recomende à minha inteligência como algo digno de escolha.

Toda escolha deve respeitar meios ou fins. Ou seja, tudo deve ser desejado ou como fim ou como meio. Não posso estar sob a obrigação de desejar meios até que eu saiba o fim. Não posso saber o fim, ou o que possa talvez ser escolhido como fim último, até saber que algo é intrinsecamente valioso. Não posso saber se é certo ou errado escolher ou rejeitar certo fim até saber se o objeto de escolha proposto é ou não valioso. É impossível para mim escolhê-lo como fim último, a menos que eu o considere intrinsecamente valioso. Isso é evidente; pois escolhê-lo como um fim não é nada mais que escolhê-lo por seu valor intrínseco. A obrigação moral, portanto, sempre e necessariamente implica o conhecimento de que o bem-estar de Deus e do universo é valioso em si, e a afirmação de que ele deve ser escolhido pelo valor em si, ou seja, de maneira imparcial e por causa de seu valor intrínseco. É impossível que as idéias de certo e errado desenvolvam-se antes que se desenvolva a idéia do valor. O certo e o errado dizem respeito a intenções e, estritamente, nada mais, como veremos. A intenção implica um fim pretendido. Ora, o que é escolhido como fim último é e deve ser escolhido pelo seu valor em si ou por seu valor intrínseco. Até que se perceba o fim, não pode existir nenhuma idéia nem afirmação de obrigação a seu respeito. Por conseguinte, não pode existir nenhuma idéia de certo ou errado a respeito de tal fim. O fim precisa ser percebido antes. A idéia do intrinsecamente valioso deve ser desenvolvido. De maneira simultânea com o desenvolvimento da idéia do valor, a inteligência afirma e precisa afirmar a obrigação de desejá-lo, o que, estritamente falando, seria o mesmo que afirmar que é correto desejá-lo e errado não desejá-lo.

E impossível que a idéia de obrigação moral, ou de certo e errado, seja desenvolvida sob quaisquer outras condições além das que acabamos de especificar. Suponham, por exemplo, que se diga que a idéia do intrinsecamente valioso não é necessária para o desenvolvimento da idéia da obrigação moral e do certo e errado. Vamos analisar. Concorda-se que a obrigação moral e as idéias de certo e errado dizem respeito, diretamente, só às intenções. Também se aceita que a obrigação de desejar meios não pode existir antes que se conheça o fim. Também se aceita que a escolha de um fim último implica a escolha de algo pelo valor dele mesmo ou por causa de seu valor intrínseco. Ora, por essas admissões, segue-se que a idéia do valor intrínseco é a condição da obrigação moral e também da idéia da obrigação moral. Deve-se seguir que a idéia do valor deve ser a condição da idéia de que seria correto escolher, ou errado não escolher o que seja valioso. Não faz sentido, portanto, afirmar que as idéias do certo e errado desenvolvem-se antes da idéia do valor. É o mesmo que dizer que eu afirmo ser correto desejar um fim antes de ter a idéia de um fim; ou errado não desejar um fim enquanto não tenho idéia ou conhecimento de algum motivo pelo qual ele deva ser desejado, ou, em outras palavras, enquanto não tenho idéia de um fim último.

Entenda-se, portanto, de maneira direta, que as condições da obrigação moral na forma universal de obrigação de desejar o máximo bem-estar de Deus e do universo, pelo valor dele mesmo, são a posse das capacidades ou faculdades e susceptibilidades de um agente moral e luz ou o desenvolvimento das idéias de valor, de obrigação moral e de certo e errado.

Defini as condições da obrigação em sua forma universal, i.e., obrigação de ser benevolente, de amar a Deus e ao nosso próximo, ou de desejar o bem universal do ser pelo seu valor intrínseco. A obrigação nessa forma é universal e sempre uma unidade e sempre sob as mesmas condições. Mas há miríades de formas específicas de obrigação relacionadas às condições e meios de alcançar essa fim último. Teremos ocasião, daqui em diante, de mostrar de modo completo que a obrigação diz respeito a três classes de atos da vontade, ou sejam, a escolha de um fim último; a escolha das condições e meios de alcançar tal fim; e as volições executivas ou esforços empregados para alcançar o fim. Já demonstrei que a agência moral, com todas as suas implicações, possui as condições universais da obrigação de escolher o bem máximo do ser como fim maior. Isso deve ser evidente por si.

A obrigação de escolher as condições desse fim, a santidade de Deus e dos agentes morais, por exemplo, deve ser condicionada pela percepção de que essas são as condições. Em outras palavras, a percepção da relação desses meios e o fim deve ser a condição da obrigação de desejar a existência deles. A percepção da relação não é base, mas simplesmente a condição da obrigação nessa forma. A relação da santidade com a felicidade como uma condição de sua existência não poderia impor a obrigação de desejar a existência da santidade sem referência ao valor intrínseco da felicidade, como a razão fundamental para desejá-la como condição e meio necessários. A base da obrigação de desejar a existência da santidade como meio de felicidade é o valor intrínseco da felicidade, mas a percepção da relação entre a santidade e a felicidade é uma condição da obrigação. Mas apesar dessa percepção da relação, a obrigação poderia não existir, e ainda a relação percebida poderia não criar a obrigação. Suponha que a santidade seja o meio de felicidade; ainda assim, não poderia existir qualquer obrigação de desejar a santidade por conta dessa relação, a menos pelo valor intrínseco da felicidade.

 

Condições da obrigação de desenvolver atos executivos.

Tendo agora definido as condições da obrigação em sua forma universal e também na forma da obrigação de escolher a existência da santidade como meio necessário para a felicidade, passo agora a destacar as condições da obrigação de desenvolver volições ou esforços executivos para garantir a santidade e garantir o máximo bem do ser. Nossa vida agitada é formada de esforços para garantir algum fim maior a que se dispõe o coração. Considerarei agora o sentido em que a obrigação estende-se a essas volições ou atos executivos; no momento preocupo-me apenas em definir as condições dessas formas de obrigação. Essas formas de obrigação, compreendam, dizem respeito a volições e conseqüentes atos externos. As volições, vistas como atos executivos, sempre supõem a existência de uma escolha do fim designado para ser garantido por elas. A obrigação de desenvolver um esforço executivo para garantir um fim deve ser condicionado pela possibilidade, suposta necessidade e utilidade de tal esforço. Se o fim escolhido não necessita ser promovido por nenhum esforço nosso ou se tal esforço nos é impossível, ou se é considerado inútil, não pode haver obrigação de executá-lo.

É importante, porém, observar que a utilidade da escolha última ou a escolha de um objeto pelo valor intrínseco dele não é uma condição de obrigação nessa forma. A escolha última ou a escolha de um objeto por seu valor inerente ou intrínseco não é um esforço forjado para garantir ou obter tal objeto; ou seja, não é desenvolvido com tal desígnio. Quando o objeto que a mente percebe ser intrinsecamente valioso (como o bem do ser, por exemplo) é percebido pela mente, a mente não pode senão escolhê-lo ou recusá-lo. A indiferença nesse caso é naturalmente impossível. A mente, em tais circunstâncias, está sob uma necessidade de escolher um rumo ou outro. A vontade deve acolhê-lo ou rejeitá-lo. A razão afirma a obrigação de escolher o intrinsecamente valioso pelo próprio valor dele, e não porque o fato de escolhê-lo irá garanti-lo. Assim também, a real escolha dele não implica um propósito ou uma obrigação de desenvolver atos executivos para garanti-lo, exceto sob a condição de que tais atos sejam considerados necessários, possíveis e forjados para garanti-lo.

A escolha última não é desenvolvida com a intenção de garantir o objeto. É apenas a vontade acolhendo o objeto ou desejando-o pelo valor dele mesmo. Em relação à escolha última, a vontade deve escolher ou recusar o objeto sem nenhuma consideração da tendência da escolha de garantir o objeto. Assumindo essa necessidade, a razão afirma que é correto, adequado, conveniente ou, o que é a mesma coisa, que a vontade deve, ou está sob a obrigação de escolher o bom ou valioso, e não recusá-lo, por sua natureza intrínseca, sem levar em conta se a escolha garantirá o objeto escolhido. 

 

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